O HOMEM QUE MATOU PAULO FRANCIS (Primeira parte)

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(Teatro)
“O Brasil é um asilo de lunáticos onde os pacientes assumiram o controle”.

Foi o diplomata e dramaturgo Pascoal Carlos Magno (1909-1980) quem o batizou de Paulo Francis. Isto, por volta de 1950, quando o jovem estudante de Filosofia Franz Paul Trannin da Matta Heilborn (1930-1997) se juntou à galera do Teatro do Estudante Brasileiro (TEB), idealizado por Magno quando de sua volta ao Brasil, após exercer por vários anos a diplomacia na Inglaterra. O embaixador era homem de teatro, autor de várias peças, como Pierrot (com música de Joubert de Carvalho), premiada pela Academia Brasileira de Letras, em 1930. Dele, também, é o texto Tomorrow Will Be Different, que encenou em Londres e outras cidades europeias com boa receptividade de público e crítica, em 1946.
O TEB teve por desdobramento a fundação do Teatro Duse, instalado em sua própria casa, no bairro carioca de Santa Teresa, em 1952, visando à formação de novos atores e maior visibilidade aos autores nacionais. Aquele espaço revelou dramaturgos estreantes (Antônio Callado, Rachel de Queiroz) e intérpretes que conquistaram plateias Brasil afora – a exemplo de Sérgio Cardoso (1925-1972), remanescente do TEB, onde estreou em Hamlet, de Shakespeare, sob direção de Pascoal Carlos Magno, em 1948.
Enquanto integrante do TEB, Francis participou de várias peças, chegando a ganhar o prêmio de ator-revelação, por sua atuação em A Mulher de Craing, de George Kelly, dirigido por Henriette Morineau, ainda em 1952. Ele mesmo, quem sabe, poderia vislumbrar uma bela carreira de ator, mas não queria “só isto”. Tornar-se um diretor de teatro era o sonho que passou a perseguir. Por isso, em 1954, viajou aos Estados Unidos para fazer um curso de Literatura Dramática, na Universidade de Columbia, ministrado por Eric Bentley, autor e crítico teatral dos mais prestigiados à época. Ao retornar ao Brasil, no ano seguinte, trouxe muitas ideias, que pretendia implementar à cena brasileira. Foi então que se juntou ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC).
Fundado em São Paulo no ano de 1948 pelo engenheiro italiano Franco Zampari – um figurão das Indústrias Matarazzo e da granfinagem paulistana -, o TBC tornou-se uma referência no país. Pisaram em seu palco artistas que se tornaram célebres, a exemplo de Cacilda Becker, Paulo Autran, Cleyde Yáconis, Sérgio Cardoso, Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Walmor Chagas, entre muitos outros. Foi ali, também, que Paulo Francis estreou como diretor, na peça O Dilema de um Médico, de Bernard Shaw. Em seguida, montou O Telescópio (Jorge Andrade), Pedro Mico (Antônio Callado) e Uma Mulher em Três Atos, de Millôr Fernandes. Tal currículo pode não ser tão extenso, mas o teatro permaneceu correndo em suas veias. E isto fica comprovado, através do papel que exerceu na crítica teatral e na criação do personagem que levou para o telejornalismo, quando estreou na Globo, em 1981.
Foi no dia 2 de fevereiro de 1957 que Francis estreou como crítico de teatro na Revista da Semana, então dirigida por Hélio Fernandes. E por que não dizer, foi nesta mesma data a estreia do jornalista polêmico, que foi o seu estilo ao longo dos quarenta anos de militância na imprensa brasileira. Na opinião de George Moura, em seu livro Paulo Francis, o Soldado Fanfarrão, ele foi ”um divisor de águas. Antes dele, crítica era uma ação entre amigos”. Influenciado por seu mestre Eric Bentley, ele próprio costumava dizer que sua intenção era enxergar em cena, “um equivalente da unidade e totalidade de expressão que um texto, idealmente, nos dá em leitura […] a unidade e totalidade de expressões literárias”.
Em um de seus primeiros textos publicados na Revista da Semana, estabeleceu comparação entre as atrizes Fernanda Montenegro e Cacilda Becker, concluindo que a segunda era melhor. É claro que esta conclusão deu muito o que falar no meio artístico, mas o pior ainda estava por vir. Logo em seguida, comentando uma peça estrelada por Tônia Carrero, referiu-se a ela como “uma atriz sexy”. Era um tempo em que o termo “sexy” só se empregava a artistas que exibiam o corpo, como as vedetes do teatro de revista. Chamar Virgínia Lane, Luz del Fuego, Elvira Pagã de sexys soava como elogio, mas esta não era a praia da artista em questão. Tônia não gostou do “elogio” e resolveu devolvê-lo. Numa entrevista concedida pouco depois, ao perguntarem o que achava de Paulo Francis, respondeu: “Ele sofre do fígado, mas é o crítico mais sexy do Brasil”.
Consta que Paulo Francis tinha sérios problemas com a sua sexualidade. O jornalista desabrido, que falava e escrevia com desembaraço sobre qualquer tema, não abria pra ninguém (ou quase ninguém) seus arroubos sexuais – se é que os tinha. Daí, ao ser classificado como sexy, viu na fala de Tônia uma referência velada à sua masculinidade. Tal declaração mexeu com os instintos machistas do crítico, que decidiu não deixar barato. Na semana seguinte, publicou em sua sua coluna:
“Nunca dormi com Tônia, pois não costumo dormir com mulheres da idade da minha mãe. Nunca dormimos juntos que eu me lembre, para que ela possa manifestar-se sobre minha virilidade. É possível que a vedeta esteja me confundindo com alguns de seus colegas de palco. Tônia talvez se interesse em saber que já me foram oferecidas cópias das fotos em que ela posou em trajes menores e posições provocantes, fotos que foram publicadas numa revista pornográfica americana, Nugget”.
Não demorou muito para que o diretor Adolfo Celi, então marido de Tônia Carrero, o encontrasse num teatro. Na ocasião, arrancou-lhe os óculos, quebrou-os e desferiu-lhe um soco bem no meio da cara. Mas a coisa não parou por aí. O ator Paulo Autran, grande amigo do casal, indignou-se com o insulto à atriz e anunciou aos mais chegados que também aplicaria “um corretivo” ao crítico. Sua intenção inicial era repetir o gesto de Adolfo Celi, mas faltou-lhe habilidade para tanto. De acordo com seu relato à repórter Mary Persia (Folha Online – 28/11/2005) ele “nunca havia dado um soco em alguém”, e acrescenta: “É difícil, sabe? O corpo se contrai, o braço fica pesado…”.
Foi então que optou por outra reação. Autran estava fazendo uma peça, cujo personagem só entrava na cena final. Enquanto esperava sua entrada, percebeu que Paulo Francis estava na plateia, sentado ao lado do ator Ítalo Rossi. Assim que terminou o espetáculo, após a saída do público, se aproximou do jornalista, chamando-o. Quando este se virou de frente, o ator cuspiu-lhe na cara – a mesma cara anteriormente esmurrada por Adolfo Celi. “Juntei bastante cuspe e cuspi com prazer” – declarou à Folha Online.
Passaram-se vários anos para que Francis, em sua autobiografia, fizesse referência a esses episódios e lamentasse jamais ter reatado as relações de amizade com Paulo Autran. E mesmo reconhecendo que havia sido excessivamente “cruel” com Tônia Carrero, insistiu que sua crítica, do ponto de vista jornalístico, estava correta. Isto levou Autran a concluir: “Atores são vaidosos, mas críticos são mais. (…) A vaidade de Francis era incomensurável, quase tanto quanto o talento de Guimarães Rosa”.

(Continua)


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