Quem assistia à cerimônia do casamento de Sandoval com Ana Lúcia, não tinha dúvida: haviam nascido um para o outro. “Parecem dois pombinhos” – dizia a mãe, orgulhosa. “Como um parzinho de bibelôs” – retrucava uma tia distante, que só aparecia nas ocasiões que julgava especiais, tais como velórios e casamentos. Após a cerimônia, a comemoração foi num baita salão de festas, onde rolaram comida a rodo e bebida a balde. A alegria dos convidados foi tanta, que nem os resmungos de uma prima solteirona, que não conseguiu pegar o buquê, ofuscou brilho da festa. Foi tudo tão lindo, que parecia sonho.

Terminada a festa, cada qual foi para sua casa, e o casal rumou para a lua-de-mel, em São Tomé das Letras, Minas Gerais, de onde regressaram uma semana depois, indo direto para o que chamavam de “nosso ninho de amor”. Este era um apartamento na Baixada Fluminense; pequeno, porém confortável, na medida em que oferecia espaço suficiente para os dois. Como o casamento se dera no período de férias de Sandoval, o casal ainda teve mais uma semana, com dias inteiros dedicados a beijos e abraços; coitos e orgasmos – enfim, aquela vida que todos pedem a Deus, mas ele só concede aos escolhidos.

Como a vida precisa seguir em frente, chegou o dia em que Sandoval voltou ao pequeno aviário, que mantinha em sociedade com um tio. Voltando ao local de trabalho, após vários dias de plena felicidade, o rapaz não podia deixar de relembrar o dia em que conheceu a sua amada, naquele mesmo aviário. Parecia vê-la entrar, impávida, dizendo:

– Quero uma galinha bem bonita.

– Serve esta? – ele quis saber, após escolher um belo exemplar da espécie.

– Não tem outra melhor?

– Claro – apressou-se o jovem, acrescentando uma piadinha, com que costumava arrancar risinhos cínicos de algumas clientes –. Aqui, sempre temos as melhores penosas do bairro.

Ana Lúcia não riu. E foi exatamente esse ar pudico, que o fez atendê-la com mais seriedade em sua segunda visita ao estabelecimento. A moça ficou freguesa, e começou a frequentar o aviário com tanta insistência, que até dava a impressão que em sua casa só se comia galinha. Sandoval ficava a imaginar os pratos apetitosos que ela saberia preparar com aquelas galináceas. E em sua imaginação pululavam galinhas assadas, ensopadas, fritas ou ao molho pardo; risotos, empadões, xinxins… Tanto fez Sandoval, que Ana Lúcia acabou por convidá-lo a um jantar de aniversário em sua casa, casa esta que ele passou a visitar todas as noites, por conta de uma paixão sinceramente correspondida, que se converteu em namoro firme, seguido de noivado e, por fim, de casamento.

Ao cabo de algum tempo que uniu aqueles destinos, nasceu um garotinho – orgulho daquele lar. A vida lhes sorria e Sandoval era o que queria: um chefe de família, honrado, a trabalhar. Mas, numa noite de Reis, quando ao seu lar regressava, o homem foi surpreendido pela esposa com a notícia:

– Quero voltar a estudar.

– O quê ?!?

– Sim, quero prestar vestibular para alguma faculdade.

Sandoval tentou argumentar que o filho ainda era muito pequeno, em quase tudo dependente da mãe, que não ganhava tanto para arcar com as despesas de uma faculdade e uma babá para a criança. E mais: cabreiro com as notícias alarmantes que tomara conhecimento pela televisão, tinha medo de deixar o menino com alguém que não fosse da sua estrita confiança, a fim de que não sofresse maus tratos. Porém, nada parecia empecilho para Ana Lúcia. Segundo ela, não haveria acréscimo nas despesas da casa, uma vez que tentaria ingressar numa faculdade pública. E, afinal, pra que babá, se a sua mãe era tão agarrada com o neto?

– Ela vai adorar ficar com o Henriquinho – completou.

A mulher estava mesmo decidida a dar um novo impulso ao seu futuro. Tanto, que fez o pré num cursinho sem nome e, em seguida, prestou exame para a UFRJ, Uerj e Uff, nas quais não foi aprovada. Mas não desistiu. Tentou uma faculdade vagabunda – dessas, cujos formandos não resistem a uma sabatina de Português em nível básico – e não deu outra: passou em sexto lugar. O marido, satisfeito com o bom desempenho da esposa, passou a dar-lhe a maior força, nesta nova etapa de sua vida. Começado o período letivo, Ana Lúcia ia que era só entusiasmo para o curso de História, não sem antes passar na casa de sua mãe, a fim de deixar Henriquinho aos seus cuidados.

Desde o pré-vestibular, porém, havia outra novidade na vida de Ana Lúcia. Alfredo era o seu nome. Moreno, alto, empregado numa secretaria de Estado e que, como ela, sonhava alçar voos mais altos, a partir daquele curso de História, mesmo que numa faculdade vagabunda. O caminho que Alfredo percorria diariamente entre o trabalho e a escola cruzava com o caminho de Ana Lúcia. Sendo assim, ele, por gentileza, se dispôs a dar-lhe carona, o que ela, por educação, aceitou de bom grado. Por isso, todas as noites a mulher do Sandoval postava-se num ponto estratégico, até que o colega chegava. Cumprimentavam-se com beijinhos no rosto e lá se iam.

Em sua casa, com Sandoval, Ana Lúcia pouco falava sobre Alfredo. Porém, em casa da mãe, com as irmãs e as primas, ela não media palavras, ao elogiar seus modos gentis, sua capacidade de apreensão das matérias escolares e o seu humor fino – segundo as concepções dela, a cerca de humores finos. Com a vida seguindo em frente, a mulher foi ficando cada vez mais sem cerimônia, ao falar do novo amigo. E a falta de cerimônia evoluiu a tal ponto, que ele passou a deixá-la à porta da casa da mãe, todas as noites, para que ela pegasse o filho. Só isso já era o bastante, para que a sogra de Sandoval desconfiasse das boas relações da filha com aquele homem. O marido, entretanto, não levantava qualquer suspeita quanto a isto. Estava feliz com o esforço da esposa, no sentido de buscar um futuro melhor para si e a família. Nem mesmo quando Ana passou a ir todos os sábados – com Alfredo a tiracolo – fazer trabalho em grupo na casa dos colegas, o homem demonstrou desconfiança.

Se havia um substantivo não componente da personalidade de Anita, mãe de Ana Lúcia, este chamava-se ingenuidade. Com uma pulga atrás de cada orelha, ela chamou a filha para conversar. Disse-lhe que não ficava bem, ela andar de carro pra-baixo-e-pra-cima com aquele cidadão estranho à família. Aproveitando o tom da conversa, resolveu inquiri-la sobre um possível adultério. Ela negou terminantemente, evocando a grande amizade que havia entre ambos.

– É incrível. Pra vocês, um homem e uma mulher não podem nutrir uma amizade sincera um pelo outro, sem levantar suspeitas de adultério. Cabeças sujas…

Com a vida seguindo, como sempre, Ana Lúcia e Alfredo eram vistos juntos na faculdade, na rua, em festas – enfim, aqui, lá e em todo lugar, como diriam os bem-aventurados Beatles. Numa noite em que Anita decidiu retomar a conversa, Ana Lúcia concordou em abrir o jogo: estava traindo Sandoval, sim, mas não era com Alfredo. Na condição de seu melhor amigo, ele apenas facilitava as coisas, para que ela pudesse viver um grande romance com o Ramirão, um escrivão da Polícia Civil.

– E mais – disse ela: vou largar Sandoval e vou viver com o meu amor, num apartamento que ele já alugou pra nós, em São João de Meriti.

Dito e feito. Dali a três dias, Ana Lúcia arrumou seus pertences e foi-se embora, sem deixar sequer um bilhete para o marido. Nem do filho ela quis saber. Deixou-o na casa da mãe. A atitude da mulher chocou toda a família. Sandoval, magoado com a traição, chorou copiosamente, por noites e dias seguidos. Até que decidiu, também, tomar uma atitude. Armou-se de um revólver e saiu no encalço de Alfredo, aquele pervertido que servira de alcoviteiro para sua mulher e o amante dela. Ao chegar à faculdade naquela noite, ainda teve tempo de ver Ana Lúcia e Ramirão entrando num carrão todo preto, como soe ser o carro de todo ricardão que se preze. Mas era com Alfredo – que ficara à beira da calçada, depois de se despedir do casal – que o marido queria ajustar contas. Arma em punho, apontada para o peito do amigo da ex-mulher, esbravejou:

– Alfredo, seu filho da puta, por que você fez isso, hein?!?.. Por quê?!?.. Vai, me responde, por quê?!?… Por que você jogou a minha mulher nos braços daquele canalha?…

O outro permaneceu em silêncio por alguns segundos, para depois responder em apenas dois fôlegos:

– Então, você não sabe por quê? Fiz isso porque te amo, seu bobo.

O dois homens ainda ficaram ali, por um tempo, frente a frente. Em seguida, Sandoval guardou o revólver, no que Alfredo aproveitou para virar as costas e sair. Menos de vinte passos depois, ele olhou para trás e viu que o outro permanecia parado no mesmo lugar, olhando-o fixamente. Virando-se para o marido traído, o amigo da mulher também parou. Ficaram mais um pouco olhando, um nos olhos do outro, calados. Até que o silêncio foi cortado por Sandoval, que balbuciou:

-Ah, Alfredo!…

E a resposta deste:

-Sandô… Sandô!!!

Movidos por um impulso estranho aos olhos dos circunstantes, ambos correram um para o outro, se abraçaram e beijaram-se freneticamente, sob os olhares curiosos de alguns alunos, que ainda deixavam a faculdade.

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Eldemar de Souza


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