Livro NAS SOMBRAS DA DIÁSPORA Patrimônio e Cultura Afro-brasileira na Baixada Fluminense [ download ]
Organizado pelo professor Nielson Rosa Bezerra, a pesquisa do livro foi feita por Aline Souza Nascimento, Daniela Carvalho Cavalheiro, Marlucia dos Santos Souza e o próprio Nielson.
O livro faz parte da coleção Memória Fluminense, selo da APPH-Clio e foi patrocinado pelo Inepac, em 2013.
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NAS SOMBRAS DA DIÁSPORA Patrimônio e Cultura Afro-brasileira na Baixada Fluminense
APRESENTAÇÃO
O tema da diáspora africana está diretamente conectado com o debate sobre o Patrimônio Cultural que se formou no Brasil ao longo de seu processo histórico. De acordo com Gilberto Freyre, seriam as expressões afro-brasileiras as autênticas manifestações da nossa cultura, uma vez que teriam sido os negros, descendentes dos africanos escravizados em tempos coloniais, os principais agentes da formação de uma identidade nacional. Malogradas as críticas que atribuíram-se ao pensamento do autor de Casa Grande & Senzala (algumas muito acertadas, outras forjadas por corriqueiras leituras sobre a sua obra), há certo consenso no pensamento nacional sobre as heranças africanas que influenciaram diretamente na formação da cultura brasileira. O presente trabalho é uma contribuição sobre esse debate, uma vez que se propõe a identificação, o registro e a contextualização de equipamentos e tradições culturais que se forjaram na Baixada Fluminense ao longo dos anos. Acrescentou-se nesse inventário uma preocupação metodológica inspirada na concepção de que não há cultura brasileira sem a dimensão africana.
Desde o fim do século XVI, os africanos estiveram presentes na Baixada Fluminense em função do trabalho escravo colonial, principal eixo econômico do Brasil até o fim do século XIX. Durante o século XVIII, com a descoberta nas Minas Gerais, a abertura do Caminho Novo de Garcia Paes (1704), e de sua variante pelo Caminho do Proença (1722), cortou o território, tornando-se inevitável a passagem por suas freguesias para se atingir o interior da Colônia. Desse modo, viajantes, tropeiros, barqueiros e autoridades tornaram-se importantes agentes de confluências, transmitindo diferentes formas de pensar, diferentes modos do fazer cotidiano que forjaram tradições, sociabilidades e expressões culturais que ainda hoje se encontra na região. Durante o século XIX, as irmandades religiosas, fundadas durante o período colonial, continuavam como importantes referências para os arranjamentos sociais, tanto entre senhores, como entre libertos e escravos.
Desse período, aprende-se sobre a interessante organização quilombola. Às margens dos rios Iguaçu, Sarapuí, Meriti, Botas, entre outros, os mesmos que teriam servido como primeiras vias para que o colonizador tivesse acesso as terras alagadas entre o mar e a serra, foram reduto de diferentes comunidades formadas por escravos fugidos. Com uma economia baseada no corte e comercialização da lenha dos mangues, os quilombolas também negociavam informações sobre as milícias e as expedições de repressão, organizadas pelas autoridades da Corte, impulsionadas pelas denúncias de senhores locais.
Por conta desse processo, milhões de pessoas vieram para o Brasil, centenas de milhares se estabeleceram nas freguesias do Recôncavo da Guanabara. Além do trabalho que construiu muitos dos enclaves coloniais ainda presentes na região, essas pessoas ofereceram seus hábitos, seus costumes, suas tradições, suas manifestações culturais.
Muitos deles, já convertidos ao cristianismo, ofereceram a herança por devoções marianas, recorrentes em tempos coloniais, como Nossa Senhora do Rosário ou Nossa Senhora da Conceição. Em muitos casos, foram igrejas e capelas construídas pelos africanos escravizados, mas também por eles frequentadas, onde batizavam seus filhos, registravam seus casamentos e seus parentes falecidos. Muitos deles eram membros assíduos de irmandades, privilegiados espaços que nos oferecem alguns fragmentos das formas de sociabilidade de africanos e afrodescendentes em tempos mais distantes.
Ao longo da segunda metade dos tempos oitocentistas já se podia sentir o vento das ideias de liberdade sobre o território fluminense.
Pelo menos é o que se percebe na documentação da época. Alguns depoimentos e processos criminais oferecem a voz do africano escravizado. Neles é possível encontrar uma perspectiva de transformação social, seja através de fugas, de formação de quilombos ou de alguma forma
de manuseio das estratégias de liberdade forjadas pelas novas formas de interpretar a Lei e a concepção do Direito que envolviam as questões da escravidão no âmbito do debate durante o Segundo Reinado. Desse tempo começa-se a perceber as últimas gerações de africanos na Baixada Fluminense, pelo menos aqueles que para cá vieram como escravizados. Desse tempo também começa-se a perceber as primeiras gerações de famílias afrodescendentes, cuja forma de viver revelava muito das antigas tradições de seus antepassados africanos agora adaptadas ao direito à liberdade, inicialmente asseguradas pelas alforrias e depois pela sua universalização através da Lei Áurea.
O pós-abolição marcou a vida dessas famílias. O campesinato e a agricultura familiar eram o tom das formas de sobrevivência das famílias negras durante os primeiros anos republicanos. A luta por melhores condições de saúde e pelo acesso à escolarização dos netos e filhos daquelas famílias possibilita uma ideia sobre as expectativas de ascensão geracional para uma ascensão social. Ainda no início do século XX, percebe-se o processo de enraizamento e estabilização social de famílias negras na Baixada Fluminense. Enraizamento porque muitas famílias que viviam durante o trabalho escravo, ali se mantiveram, mesmo após o direito à liberdade assegurado pela lei de 1888. Era o caso de raízes sociais e culturais que mantiveram aquelas pessoas fixadas nas terras em que já haviam batizados seus filhos ou enterrado seus entes queridos. Por outro lado, muitas famílias, que optaram por sair do interior, encontraram na Baixada Fluminense a proximidade possível da capital nacional e as condições de vida e de trabalho baseadas em um campesinato negro ainda existente.
São dessas primeiras décadas do século XX que se tem informações sobre os primeiros terreiros de candomblé, das primeiras folias de reis, dos blocos carnavalescos, entre outras tantas manifestações afro-brasileiras estabelecidas na Baixada Fluminense. De alguns anos mais tarde, encontra-se, por exemplo, a notável obra de Santos Lemos, um jornalista que descrevia a vida cotidiana da população empobrecida (em sua maioria negra), suas tradições, suas condições de trabalho e a pesada discriminação social que a Lei Áurea não garantiu o fim. Ainda é possível encontrar poetas,
obras literárias, artistas plásticos que, de alguma forma, expressaram o valor das manifestações afro-brasileiras na Baixada Fluminense.
A Baixada Fluminense é um conjunto de 12 cidades localizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. A sua população total passa de 4,5 milhões de pessoas, chegando a quase 3 milhões de eleitores. Na maioria dessas cidades, a população caracteriza-se pela maior concentração de pardos e negros do estado do Rio de Janeiro. A sua história se confunde com a história do território fluminense e, consequentemente, com todo o território nacional.
O presente trabalho é uma contribuição para relacionar a história da Baixada Fluminense com o debate sobre o Patrimônio Cultural, considerando as heranças africanas que foram determinantes para a formação da sociedade local, valorizando a população negra, descendente dos africanos que aqui se estabeleceram desde os primeiros tempos da diáspora.
Diante de um território amplo e uma população de milhões de pessoas, é possível afirmar que há uma quantidade expressiva de patrimônio que precisa ser identificado, registrado e contextualizado. Seria impossível trabalhar com a perspectiva de inventariar todo o patrimônio da região em um período curto de tempo. Então, foi necessário estabelecer critérios para selecionar os patrimônios mais significativos, considerando uma ideia mais abrangente de patrimônio, de forma que todas as heranças da cultura afro- -brasileira fossem contempladas. Além disso, havia a necessidade de contextualizar determinados patrimônios já identificados e contemplados por outros estudos e tradições que destacaram a sua importância cultural para o povo da Baixada. Por último, também se verificou patrimônios que, em princípio (considerando as diretrizes do edital que financiou o projeto) não poderiam ser enquadrados, pois não havia um patrimônio material a ser preservado. O desafio de assegurar o registro de algumas tradições foi importante para se repensar a ideia de patrimônio que gostaríamos de trabalhar. Dessa forma, pensamos em justificar o registros de “casas”, cuja importância arquitetônica não se justificava, mas a tradição que nelas estão abrigadas são de extremo valor para a sociedade em geral e para a comunidade afro-brasileira especificamente. Embora as fichas dos equipamentos e expressões patrimoniais estejam enumeradas sequencialmente no corpo do trabalho, a sua feitura estabeleceu seis eixos temáticos: a) Comunidade Educadora; b) Blocos carnavalescos; c) Museu Vivo do São Bento; d) Caminhos do Ouro e da Pólvora; e) Caminhos do Café; f) Resistência escrava, trabalho e devoção.
Em primeiro momento, pensou-se em organizar o inventário obedecendo a critérios cronológicos e geográficos. Contudo, percebeu-se que, mesmo distante do ponto de vista físico geográfico ou cronologicamente, os significados de cada patrimônio se aproximavam, sobretudo quando olhávamos para igrejas, casas de santos, casas de moradia, estradas, entre outros, como espaços que foram cenários para a formação de uma cultura afro-brasileira, independente do tempo em que se iniciou o seu processo histórico. Assim, obedeceu-se um critério temático, algumas vezes de forma quase intuitiva, buscando uma conexão entre diferentes temporalidades e espaços, uma vez que os africanos e afrodescendentes foram agentes fundamentais para a construção das relações que a sociedade mantém com determinado símbolo cultural.
O inventário abrange parte de três municípios: Duque de Caxias, Magé e Nova Iguaçu. Era desejado que outros municípios fossem contemplados. Mesmo desses, muitos patrimônios, que poderiam aqui está relacionados, ficaram de fora. Nesse caso, não houve critérios, apenas a incapacidade humana de realizar um trabalho dessa envergadura em poucos meses. Contudo, a perspectiva é a continuidade. Há desejo e interesse de ampliar esse trabalho de forma interativa, capaz de envolver diferentes pesquisadores e multiplicar as referências da cultura afro-brasileira que estejam amparadas por um registro que valorize a sua importância para toda a sociedade.
Nielson Rosa Bezerra
Coordenador