EM NOME DO PAI – Em memória de Alex e dos 5 anos da morte de Emily e Rebecca
EM NOME DO PAI
Quando a Esperança Morre Antes do Corpo: o falecimento social de Alexandro dos Santos
Justiça que não alcança as favelas não é justiça: é privilégio.
Por Dani Lopes

A morte de Alexandro dos Santos, no último dia 24 de outubro, pai de Emily, assassinada aos 4 anos, em 2020, junto à prima Rebecca, de 7, por uma bala de fuzil enquanto brincavam na porta de casa, no bairro Pantanal, em Duque de Caxias, é mais do que uma tragédia familiar, é o retrato cruel de um falecimento social, cultural e institucional que se repete nas periferias do Brasil, onde a vida pobre e negra segue sendo sistematicamente desprezada.
Os relatos das testemunhas no caso Emily e Rebecca não foram considerados e os responsáveis não foram indiciados.
Alex, como era conhecido, não morreu apenas por uma causa física. Morreu de desesperança. De dor acumulada, de ausência de justiça, de ver o tempo passar sem que ninguém respondesse por um crime que roubou não só a filha, mas também o sentido da própria existência. Morreu do mesmo descaso que mata todos os dias, em silêncio, nas vielas, becos e esquinas onde o Estado só chega armado, nunca acolhendo.
Antes de Alex morrer, já haviam morrido muitas coisas:
Morreu a dignidade, quando o Estado se ausentou.
Morreu a visibilidade, quando a mídia esqueceu.
Morreram os direitos, quando o inquérito estagnou.
Morreu a igualdade, quando se provou, mais uma vez, que a cor da pele e o CEP definem quem tem direito à justiça e quem é condenado ao esquecimento.
Alex não resistiu ao peso da negação da humanidade aos seus. Sua morte é consequência direta de uma estrutura racista, desigual e seletiva, que naturaliza a violência contra corpos negros, que torna normal a morte de crianças nas favelas e que transforma o luto em rotina. Ele se foi, mas o que o matou não foi um agravamento clínico somente, foi o sistema.
Ele sempre reclamava da invisibilidade aprofundada na Baixada Fluminense, da pouca atenção dada um caso tão emblemático: duas crianças mortas pela mesma bala de fuzil, duas priminhas. Em uma entrevista que ele me concedeu para a construção do Manifesto Emily e Rebecca, dizia, “ Bom dia bom dia pessoal da defensoria pública, do MP, aqui é o pai da Emilly Vitória e tio da Rebecca…”, era como se apresentava a partir da tragédia. Não havia mais Alexandro, era o pai da Emily, tio da Rebecca.
No Brasil, muitos pais e mães favelados vivem esse falecimento em vida. Morrem um pouco a cada dia na luta por justiça, por dignidade, por memória. Morrem na espera por respostas que nunca vêm, por políticas que não chegam, por empatia que não existe. São cidadãos constitucionalmente iguais, mas tratados como vidas descartáveis. São sobreviventes de uma guerra não declarada, vítimas de uma necropolítica que decide quem pode viver e quem pode morrer e, pior, quem pode sonhar.
Segundo o Instituto Fogo Cruzado somente em 2023, 25 crianças foram baleadas no Rio de Janeiro, 10 delas, morreram. Esse tipo de número absurdo produz uma reação que não tem nome, mas que precisa se organizar para avançar, se acolher e se proteger, mães e pais que vivem o luto como militância, como, mães de Manguinhos, mães da Raave, mães da Baixada e tantas, tantos outros, mobilizados ou acuados por suas dores. São mulheres e homens que perderam seus filhos para a violência de um Estado que deveria protegê-los, mas que os transformou em alvos. Carregam, é o que imaginamos, não ter outra escolha a não ser defender seu filho, mesmo já morto, é a realidade.
Nas costas o peso de processos que não andam, de investigações silenciadas e de uma dor que o tempo não cura. Nas ruas, nas praças, nas audiências, suas vozes, entre lágrimas tem o som mais triste que a resistência, poderia ter, transformando o sofrimento em denúncia, o luto em luta. Cada faixa erguida, cada nome lembrado, cada marcha é um grito por justiça e humanidade que deveria ser entoado por todos nós na tentativa de impedir que outras mães e pais conheçam a mesma dor. Mas são eles que em meio ao dilaceramento emocional, mantêm viva a memória dos que o Estado tentou apagar, e nos lembram, todos os dias, que justiça que não alcança as favelas não é justiça: é privilégio.
A morte de Alex expõe a violência que não se limita à bala. Ela é social, quando falta comida na mesa. É cultural, quando apagam a voz das favelas. É institucional, quando o Estado vira as costas. É espiritual, quando matam a esperança. A cada pai ou mãe que sucumbe à dor da injustiça, morre também um pouco da nossa humanidade coletiva, da promessa de um país que deveria proteger, amparar e garantir direitos, não negá-los.
Enquanto a sociedade olha para outro lado, famílias como a de Alex seguem enfrentando o peso de uma ausência tripla: do Estado, da justiça e da esperança. E é essa ausência que continua matando não só pessoas, mas territórios inteiros, seus sonhos, sua resistência. Nas favelas e periferias, a esperança não é a última que morre: são os pais e mães que morrem antes dela, vencidos por um sistema que insiste em calar suas vozes.
Com Alex morre um pouco de tudo o que deveríamos ser como nação: humanos, solidários, justos. A Constituição garante direitos iguais para todos. Mas quem são esses todos?
O pouco que nos sobra diante desses cenários desérticos, vem dessas mães e pais que seguem lutando.
Que a partida de Alex não seja mais uma estatística. Que seja um chamado. Um lembrete incômodo e imensuravelmente doloroso de que é preciso continuar lutando por todos os outros pais e mães repartidos de seus filhos. Para que nenhum mais sucumba ao peso da injustiça. Para que a esperança, enfim, volte a viver, não como lembrança, mas como direito.
As fotos são de Bea Domingos
RAAVE é a sigla para a Rede de Atenção a Pessoas Afetadas pela Violência de Estado, uma iniciativa criada no Rio de Janeiro em 2022 para oferecer suporte psicossocial, jurídico e social a famílias vítimas de violência estatal.

