À GUISA DOS CEM ANOS DE LEONEL BRIZOLA
Hoje, 22 de janeiro de 2022, se completam cem anos do nascimento de Leonel de Moura Brizola, um brasileiro dos melhores que já tiveram, um idealista, um homem simples e apaixonado, incendiário, um sujeito incrível cuja história merece ser reverenciada cada vez mais e escrevo estas linhas resumidas nessa intenção, em tom pessoal.
Inimigo número um da ditadura civil-militar, perseguido implacavelmente pela direita do país, representada pelo Sistema Globo de Comunicação, Brizola também era espetado por vários setores da esquerda, motivo de muita discussão e porradaria, principalmente naqueles anos da meiúca dos oitenta.
Quando criança, na Baixada Fluminense, a presença de Brizola era muito forte, registros indeléveis na alma de quem depois ia emburacar na política, na comunicação, nas lutas sociais. Mesmo criança eu sentia força desse nome na cidade, sempre falado com muita paixão. Depois, já adolescente é que comecei a montar o quebra-cabeças e entender aquele momento político e que essa força do Brizola era de fato uma onda; depois é que fui compreender que as pessoas queria votar em Brizola naquela eleição de 1982 e foi uma tsunami que barrou uma fraude eleitoral sofisticada, o escândalo da Proconsult, e fez daquele gaúcho chegado do exílio um governador de realizações de grande força.
Caso do leite dado na escola pública e que fortaleceu o cálcio de uma geração de pessoas que tinham dificuldade de manter um alimentação minimamente saudável. Comi muito mingau feito pela minha mãe com o leite B dado na escola.
Também lembro o encampamento de duas empresas de ônibus na cidade que nos permitia, crianças sem nenhum dinheiro, ter a perspectiva ir até o centro da cidade para ir à Biblioteca da Câmara, para visitar feiras de ciência em outras escolas ou mesmo pra zoar, para “ver o mundo”. Aliás, o medo de mais encampamentos de empresas fazia com que empresários de ônibus também fossem dos mais exaltados contra aquele governador “comunista.”
Por muitos motivos, dá pra ter uma ideia de que sempre fui um admirador do Brizola, desde pequeno, mas falar isso nos últimos anos é fácil, tranquilo. Mas acredite: na minha adolescência isso era uma coisa muito complicada para quem se envolvia com a militância daquele momento.
No Rio de Janeiro, o PDT não tinha na Baixada um trabalho à vera com a juventude e não tinha uma presença forte no movimento estudantil. E estando no PT, era difícil resistir às tendências mais à esquerda, que naquele momento fascinavam a molecada, como era o caso da Convergência Socialista. Majoritariamente, a galera que foi pra política da mesma idade que eu era quase sempre levada a esse caminho. E Brizola não era nada bem visto nesse segmento. Soa até engraçado falar isso agora, mas pra pra mim, essa confissão de admiração pelo Engenheiro era um suplício na época…
Apesar de militar no PT e ser líder do Grêmio Estudantil da maior escola da Baixada, o Instituto de Educação Roberto Silveira, nunca esquecerei as tantas vezes que fui chamado de pelego, pedetista encubado, reformista, prestista (sim, do Prestes!), simplesmente por admitir que sim, eu achava Leonel Brizola um cara fascinante e importante demais pra História do país.
Mas apesar dos achincalhes e zoadas eu segui na admiração do Velho naquele momento e isso se manteve até hoje.
Por conta de raízes paraibanas e envolvimento desde cedo com a cultura nordestina, por muitas vezes falar de um Brasil popular pra mim sempre foi pensar a partir desse trópico, dessa região do país e suas imensuráveis riquezas culturais. Mas com o tempo, e com a contribuição decisiva de Brizola, fui entendendo que esse Brasil popular também é vivão no Sul e que especialmente o gaúcho tem um modo todo próprio de envolvimento com a terra e com a luta contra as injustiças. E que também o povo de lá vive como em todo o país a desgraça do latifúndio e da violência do campo, como nos marcou profundamente o filme Terra para Rose, de Tetê Moares, documentário que vi acho que dezenas de vezes ainda moleque.
Ainda sobre o campo, uma vez li um texto pessoal de João Pedro Stédile sobre o Velho que ainda colocou outra camada de admiração em cima do que eu já sentia/conhecia. No carinhoso texto, Stédile conta várias ações incríveis dele como governador do Rio Grande, e uma delas era um detalhe marcante e curioso em relação à distribuição de material escolar gratuito. Segundo ele, o caderno distribuído pelo governo tinha na capa a figura do grande líder guarani Sepé Tiarajú, algo que o ajudou a despertar pra luta desde cedo.
Aliás, o MST oficialmente considera Brizola um dos avôs do movimento, junto com as Ligas Camponesas do Nordeste. Isso porque ele ajudou a criar e incentivou de formas concretas o MASTER, veja só, Movimento dos Agricultores Sem Terra, isso lá nos anos 1950, quando foi governador do Rio Grande pela primeira vez. A visão reiterada de que a terra é a base da soberania de um povo.
Depois, ainda na adolescência mesmo, eu já estava na rotina capitalista de trabalho/estudo, trabalhando desde os quatorze anos de office-boy, com carteira assinada e tudo. E aí minha ida diária ao centro da cidade do Rio era um esbarrar constante com a Brizolândia, algo difícil de explicar nos dias de hoje, fenômeno merecedor de um texto à parte em algum momento. Mas dá pra dizer resumidamente que a Brizolândia era um enclave político na Cinelândia que reunia diariamente centenas de pessoas que discutiam política, militavam, organizavam tarefas, distribuíam material gráfico, promoviam eventos, atualizavam fofocas e bastidores do poder, debatiam com os transeuntes, uma ocupação pública permanente em pleno coração político da cidade que um dia foi capital da república. Os Cadernos do Terceiro Mundo, por exemplo, foi ali que entrei em contato. Apesar do demérito que muitos tinham por conta das figuras lendárias, folclóricas, dos exageros, a Brizolândia foi um fenômeno marcante do qual nunca encontrei paralelo em lugar nenhum da história no país. Em termos de abnegação a um líder e seus ideias, talvez a vigília Lula Livre, em Curitiba possa ser algo com algum nível de comparação.
Depois, eu já envolvido com arte e cultura na Baixada, novinho, magrinho e cabeludo, tive a honra de trabalhar como animador cultural no segundo mandato do Brizola, em 1993, fazendo parte do Segundo Projeto Especial de Educação, no Ciep 434, no Engenho do Porto, em Caxias e isso marcou pra sempre meu ser e acabou decidindo os caminhos que vim a tomar depois. Trabalhei em alguns Cieps e pude perceber que aquilo tinha uma força que poderia de fato ter mudado o curso da história do Estado, caso não tivesse sido descontinuado.
Havia uma dificuldade extrema em retomar a força da primeira versão do Projeto após os quatro anos de abandono e depredação deliberada do governo Moreira Franco, mas a empolgação das equipes em reconstruir o projeto eram de aquecer o coração.
A perseguição ao projeto dos Cieps explica tanta coisa sobre o Brasil, sobre o Rio de Janeiro que nem dá pra estender aqui… Deixo só uma frase famosa de quando falavam do alto valor do projeto: “cara é a ignorância”, frase genial que resume o preconceito de nossas elites, para quem tudo que é destinado aos pobres é “populismo”, é demagogia, é desperdício de dinheiro. Aliás, ô cara bom de frases…
Em 1996, eu dirigia uma rádio aqui, a Quarup FM e fui entrevistar o Brizola na saída de em um evento político na Câmara Municipal. Como está registrado numa foto reencontrada há pouco, munido de um microfone de fitinha da Rádio, fui ao encontro dele na saída do evento. Nem me lembro da pergunta que fiz, mas lembro que ele ouviu, se virou pra mim e respondeu com solenidade, e pude sentir no momento o olhar profundo dele, mesmo em meio à multidão que o rodeava.
Bom, esse é um texto em primeira pessoa pra deixar registrado nesse dia minha admiração extrema por Leonel de Moura Brizola. Episódios heroicos e fundamentais da biografia do cara hoje são fáceis de acessar, como por exemplo a incrível história da criação da Cadeia da Legalidade, em 1961. Vale a pena conhecer mais sobre o sujeito. Inclusive hoje em dia com o Youtube, é só catar e dá pra ver o cara em toda a sua verve, sempre com muita paixão. Além do clássico vídeo do direito de resposta que ele conseguiu arrancar da Globo, lido em rede nacional pelo icônico Cid Moreira — momento histórico.
Deixo também o registro que nesse ano de centenário é lamentável que nem Brizola, nem Darcy Ribeiro, que também faz cem anos esse ano, sejam homenageados na Passarela do Samba, o Sambódromo,
dos quais são os pais.
Uma da tarde, hora do almoço; fico por aqui neste texto pessoal que já ficou meio grandinho.
Nas redes sociais hoje tenho visto homenagens pipocando e isso é bom. Acho que a memória do Velho Brizola deve ser cada vez mais lembrada, na esperança que seu legado de amor ao povo brasileiro sirva de exemplo de luta pra esse momento tenebroso que estamos vivendo, onde os capachos do imperialismo, os sanguessugas do dinheiro público e as ratazanas bolsonaristas estão à vontade, impunemente nos assombrando.
Viva Brizola!
[heraldo hb — pitacolândia — 22 de janeiro de 2022]
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