A Cultura da Baixada no grupo de risco
Nos últimos anos movimentos culturais da Baixada Fluminense tem reivindicado o reconhecimento da região como um polo de produção cultural do estado do Rio de Janeiro. Desde a década de 90 artistas, coletivos e instituições se organizam em movimentos e promovem a prática de redes e colaboração para criar um circuito cultural independente, diverso e pulsante. Esse cenário cresceu e se desenvolveu com as políticas culturais descentralizadas a partir de 2003, da apropriação de novas tecnologias e dos acontecimentos de 2013. Nos anos 2000 a Carta da Baixada reivindicou um curso superior em Produção Cultural devido ao potencial produtivo na área. Hoje a região conta com um dos dois únicos cursos públicos do estado, o Bacharelado do IFRJ, em Nilópolis. Em 2015 um encontro histórico estabelece um diálogo com o Ministério da Cultura, em que a BF afirmou que seus modos de fazer populares, sofisticados, globais e urbanos extrapolavam os limites impostos pelo coronelismo, que até hoje incide na vida pública. Em 2018 um movimento chamado “Baixada Filma” estendeu uma faixa no palco do tradicional Cine Odeon chamando a atenção para que o orçamento do audiovisual fosse territorializado, de modo que chegasse aos polos audiovisuais que, ainda assim, produzem sem infraestrutura e investimentos, como a BF.
Estes foram apenas alguns ensejos que afirmam o forte circuito cultural independente, desde o pioneirismo em TV comunitária no mundo, na década de 90, até o original circuito cineclubista e uma crescente produção documentarista nos dias de hoje.
Este panorama artístico é construído a partir da iniciativa e empenho dos próprios artistas e produtores, que atuam de diversas formas na região (excetuando os empreendimentos de objetivo exclusivamente comercial): Presta serviços para a indústria cultural e os equipamentos que operam na capital, participando de forma pontual e recorrente nas iniciativas dos parceiros locais; presta serviços para o SESI | SESC sendo esta rede a única instituição privada que promove cultura na região – e que está submetida a cortes de verbas que podem fechar unidades; atuam em instituições sem fins lucrativos com grande dificuldade de se manterem ativas; atuam em ruas, praças e outros espaços públicos (daqui saíram os primeiros artistas a ocuparem os vagões dos trens); uma parcela significativa atua através de coletivos, iniciativas e grupos independentes, não formalizados e com base na colaboração, na condição de realizador no seu território. É muito comum que estas realizações tenham apenas seus custos cobertos, com a venda de ingressos e produtos.
Sabendo que a região não é estratégica nas dinâmicas do patrocínio privado, consequentemente nas concessões fiscais das leis de incentivo à cultura, o fomento indireto; que o fomento público direto para a cultura encontra-se contingenciado; os equipamentos culturais públicos (teatros, centros culturais) são precarizados e insuficientes para atender a população, a existência de uma cena local depende única e exclusivamente do trabalho do profissional que atua na região.
A BF pensa e faz a cultura partindo do ponto de vista de uma periferia metropolitana brasileira, que depende de uma atitude de resistência para existir. Agora, diante de um abalo estrutural de todo o setor cultural no mundo, e de forma ameaçadora para a cultura no Brasil, em vista a destruição das políticas públicas e da censura, é muito importante dizer que a gente continua aqui. Cientes que a população de baixa renda será a mais atingida pela crise econômica em seu bem viver. Cientes da função do Estado e das políticas públicas no enfrentamento a crise, através das Secretarias de Cultura em âmbito federal, estadual e municipal, mecanismos e gestores públicos que fazem parte de uma estrutura pública que só existe para fomentar e defender a economia da cultura, as manifestações artísticas e os trabalhadores do setor. Cientes sobre o grave impacto no setor cultural da região, e considerando que uma cena cultural autônoma e vulnerável como na BF, pode não se recuperar, elaboramos uma Carta.
O documento ressalta as especificidades, enquanto território popular, dentro dos 5 milhões de trabalhadores da cultura do país. E recomenda ações que, de fato, interfiram nessa recuperação, como a articulação de recursos para a cultura, seja com o setor privado ou os entre governos municipais, estadual e federal; consolidação de mecanismos como os Fundos de Cultura; concessão de auxílio digno aos informais e formalizados, incluindo aqueles que não forem contemplados pelo auxílio emergencial. A concessão de crédito também não contempla os prestadores de serviços e realizadores que não suportariam esses custos em suas despesas mensais no futuro. Além disso, contrair dívida é uma incerteza neste ramo, pois a natureza das atividades culturais sugerem aglomerações, e não há previsão de quando isso poderá ser possível de forma segura. Necessitamos de ações concretas, que deem conta do único setor que construiu uma visibilidade positiva da região nos veículos de imprensa, na contramão do senso comum, ao afirmar nossa autoestima e vocação criativa. Ações com transparência, seriedade e respeito aos artistas, técnicos e produtores que compõem, no braço, esse polo cultural.
A carta foi enviada aos Secretários de Cultura e aos Conselhos Municipais de Cultura das cidades. Também à Secretaria de Estado de Cultura e para o Conselho Estadual, além dos deputados estaduais e a Comissão de Cultura da Alerj. Até o dia 7 de abril 262 profissionais da cultura e 140 instituições assinavam..
As políticas públicas culturais são o único mecanismo que a BF pode contar neste momento, para que os trabalhadores deem conta deste polo cultural que, com o compromisso de todos, pode não morrer em decorrência do Coronavírus.
*A Carta está aberta para assinaturas de artistas, técnicos, produtores culturais, coletivos, grupos artísticos, instituições, espaços culturais, empreendimentos criativos, que atuam na Baixada Fluminense.