Raquel Trindade e o elo perdido caxiense
Nesse final de semana, aporta em terras caxienses ninguém menos que Dona Raquel Trindade, ativista cultural, filha do poeta Solano Trindade, ficha extensa de serviços prestados à cultura desse imenso país.
Na sexta-feira, à noite, ela participa de um evento organizado pela Febf/Uerj, onde se pretende falar sobre o legado de seu pai e sobre cultura de um modo geral na região, tendo sua vivência como fio condutor.
São muitos os motivos pelos quais considero Dona Raquel um dos elos perdidos da cultura em Duque de Caxias.
Estudando há anos a história da cidade, sempre me impressionou a fenda simbólica e contundente que existe separando a Duque de Caxias de antes da década de 1970 e depois. E essa fenda é um dos fatores que fez durante décadas a juventude local não criar nenhum vínculo de inspiração geográfica e cultural com sua história. Costumo dizer que falta à cidade uma “cosmogonia”, um imaginário positivo, uma liga que articule a riqueza cultural que essa cidade viveu, mesmo em épocas de dureza econômica e social como na primeira década do século passado.
No livro que lancei esse ano, O Cerol Fininho da Baixada, analiso rapidamente esse fenômeno que chamo de “bullying midiático” que Caxias sofreu com a ação da imprensa sensacionalista no pós-ditadura, que contribuiu pesadamente para essa imagem de cidade vinculada ao abandono, ao extermínio, ao tiroteio contínuo, à ladroagem generalizada. Além de jornais impressos, programas de rádio como a Patrulha da Cidade, por exemplo, fizeram isso com constância, incluindo um personagem da linha Caxias-Mauá que apregoava que tudo de ruim era em Duque de Caxias, a “terra onde a galinha cisca pra frente”.
Pois bem. Raquel Trindade é um exemplo vivo dessa Caxias que foi apagada da memória, cidade com um rico caldo cultural fermentado à base de uma rede solidária de pessoas, grupos e ações.
Ela foi aluna da Escola Regional de Meriti, a querida Mate com Angu, onde foi a oradora da festa de despedida de Dona Armanda Álvaro Alberto, um texto emocionante e sintomático sobre a cidade e sobre aquela rica experiência. Seu pai, o absurdamente grande Solano Trindade, foi um cara fantástico que viveu na cidade uma grande parte de seu período mais criativo. Solano aqui produziu textos famosos, aqui militava politicamente, fazia interlocução com a classe média carioca, organizava festas e saraus, curtia uma boemia, agitava.
Esse pedaço caxiense da história de Solano começou a ser preenchido apenas recentemente, em 2011, com o filme O Vento Forte do Levante, do caxiense Rodrigo Dutra.
E Solano tinha como vizinho de muro, Seu Hélio Cabral, um cara incrível sobre quem ainda se conhece muito pouco. Seu Hélio era da Escola de Samba Cartolinhas de Caxias, uma das escolas mais queridas do meio do samba até os anos 1960, sendo uma referência para sambistas de vários cantos do Rio. Dona Raquel viveu essa história bem de perto, frequentando o terreiro da escola, que era vizinho.
E tem muito mais de histórias e referências espalhadas por aí. A oportunidade de estar com Dona Raquel Trindade é ímpar e é comovente saber que dentro da Febf /Uerj há um empenho em levantar e registrar essas histórias. Aliás, a própria vinda dela à Caxias está ligada a um aguardado documentário que está sendo produzido sobre Armanda Alvaro Alberto e a Escola Regional de Meriti.
Em meados da década passada faleceu um caxiense ilustre, Jair Lobo, compositor e pesquisador, filho de um dos fundadores da Escola de Samba União do Centenário, uma perda irreparável por vários motivos. Além do talento e da nobreza humana, Jair vinha escrevendo um livro minucioso sobre a história do samba na cidade, onde ia ligando os pontos dessa história ainda praticamente desconhecida, que envolve as escolas da década de 30, Cartolinhas de Caxias, União do Centenário, Capricho do Centenário e ainda a Unidos da Vila São Luis, os blocos, a rede de terreiros e o futebol. Uma história eminentemente popular que sofreu um delete quase completo. Esse livro seria um desses elos perdidos da cultura em Caxias, mas infelizmente, Jair veio a falecer antes de concluir o livro e os rascunhos se perderam pelo caminho.
É nesse contexto que entendo que Raquel Trindade, mesmo morando há anos em Embu das Artes, São Paulo, é um elo vivo dessa Duque de Caxias que só aos pouquinhos vem emergindo e isso é alentador.
O evento nessa sexta-feira, a partir das 18h30min, inclui um debate sobre o poeta Solano Trindade envolvendo cinema, literatura, movimentos sociais e resgate de memórias da Baixada Fluminense. Além de Dona Raquel Trindade, a mesa conta com o professor Antônio Carlos de Oliveira, (Biblioteca Comunitária Solano Trindade) e Rodrigo Dutra (diretor do filme O Vento Forte do Levante), com mediação de Mariana Gesteira.
“Quando estive na Europa, me mostraram métodos de ensino adiantadíssimos. Os senhores não imaginam o que senti quando verifiquei que os métodos da escola que o povo chamava de mate com angu estavam além dos métodos europeus. ‘Mate com angu’ era como nos chamavam na rua, mas eles sabiam que nós não ligávamos para o apelido, não ligávamos porque éramos felizes.”
[Discurso da então aluna Raquel Trindade representando os ex-alunos da escola por ocasião da festa de despedida de dona Armanda, em 1963]
.
Trailer do filme O Vento Forte do Levante
.
Sob a Luz de Solano, do Ponto de Cultura Km 30, com direção de Adolfo Borges, filme feito a partir do Laboratório Cultura Viva
.