Produtoras culturais: empoderamento e resistência através da arte de realizar
A indústria cultural do rock estourou enquanto os garotos americanos estavam com a cabeça na guerra as garotas financiavam o sucesso das bandas mais famosas do mundo. Elas, que desmaiavam na porta dos teatros lotados, amavam a música, e, por que não, os músicos. Logo foram chamadas de groupies, identificadas não como principais consumidoras daquela cultura, mas como objetos sexuais que atribuíam status ao rockstar.
A expropriação do trabalho e da sexualidade das mulheres no universo da arte e da cultura é um capítulo pouco contado da opressão sexista. Mulheres condicionadas ao espaço privado enquanto a cultura pede o espaço público não tem acesso aos meios de produção de cultura, por herança histórica, um domínio masculino. Hoje é possível ver, através dos números, a disparidade entre bandas compostas por mulheres e homens, o staff da produção lotado de mulheres e a técnica de homens. Publicidade sexista para shows com público feminino: damas gráࢢs e bebidas liberadas para facilitar o assédio. O show está lotado de trabalhadoras na sombra do canhão de luz e expectadoras aplaudindo seus namorados guitarristas. No entanto aquela garota que não vai montar uma banda nem virar poeta, atriz ou escritora ainda vai querer participar disso.
É recorrente que as namoradas e amigas dos artistas ajudem o boy no seu ofício: emprestam o telefone, divulgam os eventos, organizam a agenda, vendem fanzines no stand. Envolvidas passam a executar tarefas importantes, e se sentem incluídas numa história que ela respeita e curte. Quando a função de produtora se dá nas organizações coletivas, há diversas formas contidas na relação de gênero que reproduzem essa perspectiva subalternizada da mulher na produção. O espaço de fala e o reconhecimento são uma representação dos papeis marcados. Quando a direção é feminina é qualificada autoritária, mas quando é masculina é competente. A produtora cultural é vista com a marca do cuidado com o outro, não como realizadora. Isso está mudando, mas ainda não está nem perto da linha da equidade de gênero, tem muita coisa a fazer, como nas estruturas patriarcais no mundo todo.
A própria profissão de produção cultural ainda é recente. No entanto está crescendo e se desenvolvendo rapidamente nos últimos anos. No Brasil a regulamentação do investimento em cultura, a criação de cursos superiores, a disseminação do “faça você mesmo” e da periferia como produtora de cultura, reconheceram a função do produtor cultural como fundamental. Pense bem, é nesse lugar de realizar que as mulheres estão “depositadas” como secretárias e assistentes: no espaço de poder e decisão, dentro do universo da arte e da cultura.
Aquela que descola serviços bacanas e mais baratos, que carrega cenário no ônibus e fecha o borderô também é aquela que topa com as oportunidades de realização, de conexão entre publico, artista e sociedade. Esse duo de áreas operacionais e intelectuais se dá na concepção, na conceituação, na elaboração, na curadoria, na identificação de parceiros e recursos, no planejamento logístico e financeiro, na execução, na comunicação, na prestação de contas. E se ela topar com o feminismo no meio desse rolê vai poder analisar criticamente por que há tanta desigualdade entre gêneros neste processo. Estes espaços definem onde e como será o quê na indústria cultural ou mesmo a cultura que está fora dela. Porque então ainda há abismos de desigualdades entre homens e mulheres no rolê da cultura? Porque a estrutura e os processos ainda são patriarcais.
Em tempos que o feminismo é palavra fácil na indústria cultural, e a arte e a cultura somadas às novas tecnologias se colocam como canal de comunicação mais impactante entre a juventude, isso está catapultando protagonistas mulheres. No entanto as estruturas sexistas no processo de trabalho são profundas e concretas, naturalizam músicas machistas, comportamentos violentos, assédio e alienação, que coexistem no cotidiano da produção cultural.
Já existem inúmeras trajetórias de realizações femininas e feministas em redes e coletividades, mas ainda são os homens detentores desses meios de produção, e são muitos os casos de reação á esta produção, seja ceder o espaço “porque são legais”, descredibilizar o trabalho ou mesmo ignorar o debate porque “não tenho nada a ver com isso”. No entanto o diálogo e a relação com os detentores desses meios é algo inevitável quando a mulher fura a bolha e entra nesse universo. Quando você está numa posição de direção é comum em um palco só ter você de mulher, e que seus mestres e inspiradores da área sejam homens, afinal eles estão ali há décadas. Mas a histórica desigualdade nas relações traz a licença para o machismo se manifestar em diversos aspectos e, de forma mais dura quando você entra no meio, até então, dos privilegiados. A prática do feminismo impacta positivamente a mulher nesse ambiente, te empodera. Mas também desafia egos, tira privilégios, pois homens não foram preparados nessa década para lidar com equidade de gênero nos “seus” espaços. As feministas estão avançando nesta direção, mas no rolê ainda pouco se concretizou no sentido de alterar estruturas.
Nos últimos tempos tenho percebido uma grande pressa, um cansaço desse lugar subalterno. As velozes produções da rua e a avante sagacidade feminina tem apontado outras estratégias para essa relação. Estratégia pé na porta.
Reunir amigas e parceiras de trabalho, em grupos e redes, e realizar iniciativas assumidamente feministas na área da produção cultural têm crescido, mesmo que muitas das protagonistas ainda tenham que escalar os muros de classe e raça para ter acesso a esse tipo de empoderamento, olhem as realizadoras da periferia. No entanto avalio que essa ideia já revela o espaço de poder que estamos inseridas, e isso faz o patriarcado tremer porque, estrategicamente, o próximo passo é se apropriar. E isso é um convite.
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Publicado originalmente no site Blogueiras Feministas