Mapeamento Baixada Correndo Solta
Uma rápida busca na internet sobre a Baixada Fluminense apresenta, aproximadamente, 484 mil resultados, muitos dos quais relacionados a diversos tipos de violência, como roubo, assassinato, tiroteio e tentativa de assalto. A fim de lançar um novo olhar sobre esta região cercada de estigmas, a ex-aluna da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi/Uerj), Eliane Rodrigues, se propôs a mapear as iniciativas culturais independentes da Baixada, evidenciando sua importância para a valorização das identidades locais. O projeto, intitulado Baixada Correndo Solta, faz parte do trabalho de conclusão de curso de Elaine, que teve como tema a utopia. Ao todo, foram mapeadas 65 iniciativas e espaços culturais ? Fulanas de Tal, Cineclubes Mate com Angu e Buraco do Getúlio, Sarau V e Festival Roque Pense, entre outros ?, catalogados de acordo com sua área de atuação e expostos em um fanzine, como explica a própria Elaine na entrevista a seguir.
Cultura RJ: O que te motivou a criar o “Baixada
correndo solta”? Quais os principais objetivos que você
procurou alcançar com este mapeamento?
Elaine Rodrigues: Quando eu comecei a
fazer projeto final da faculdade, eu já fazia parte do Cineclube
Buraco do Getúlio e isso acabou me ajudando a perceber que
existia uma movimentação cultural forte na Baixada, mas que não
era muito conhecida fora daquela rede de cultura, principalmente,
porque ela se encontrava fora do circuito principal de cultura do
estado. Então, a motivação de fazer o projeto acabou sendo
essa vontade de tornar essas ações visíveis e de mostrar o quanto
elas eram legítimas e profissionais, mesmo sendo feitas nesse eixo
alternativo e independente. Além disso, também existia um desejo de
expor a contribuição que essas ações acabam tendo na construção
de uma nova relação que as pessoas têm com as suas cidades e seus
bairros. Aos poucos, essas ações vão desconstruindo uma
narrativa negativa ligada a Baixada e vão produzindo novas
identidades culturais, com mais afeto e beleza. As motivações
acabaram desenhando os objetivos do projeto, que eram: dar
visibilidade às produções culturais locais e independentes
na Baixada, registrar esse panorama cultural, reconhecê-las
como legítimas, evidenciar a relevância delas no contexto local e
expor a força da rede e a autonomia das iniciativas.
Cultura RJ:
Como você chegou a esse título?
ER:
Acho que antes de tudo, essas ações auxiliam muito na valorização
dos elementos culturais comuns na Baixada e “correndo solta”
é uma gíria bem comum por aqui, então eu quis trazer um pouco
desses elementos para o nome também. Ela usada quando se quer dar
um sentido de algo que é muito intenso, muito movimentado e era
essa a minha intenção ao falar do movimento cultural da Baixada.
Ao mesmo tempo, o termo também dá uma noção de liberdade, de
“correr solto” e que também daria conta da característica
autônoma dessas ações.
Cultura RJ: Como você começou a se
envolver com os cineclubes e essas produções?
ER: Na verdade, entrei no cineclube no início
2013, mas o conheci em 2012. Quando conheci, fiquei surpresa por ter
esse tipo de iniciativa em Nova Iguaçu, existindo há 6 anos e
eu nunca tinha ouvido falar. Eu fui apresentada por um namorado, que,
na época, fazia parte do coletivo. A gente acabou terminando,
mas como eu tinha ficado amiga da Luana e do Bion (fundadores do
Buraco) e eles estavam precisando de alguém que pudesse fazer
as artes de divulgação das sessões, eles acabaram me convidando
para fazer parte do coletivo. O meu envolvimento foi se
dando a cada sessão, porque como o Buraco não é só um cineclube,
ele também abre espaço para outras linguagens artísticas,
isso permite que muitos artistas se apresentem. E esses artistas da
Baixada se caracterizam por também serem produtores, ou seja,
ele é poeta e também produz um sarau em Nilópolis, por exemplo.
Então, sempre que ia ao Buraco, eu era apresentada a novas
ações em vários lugares da Baixada, e isso foi me surpreendendo! E
conforme eu ia conhecendo cada ação, ficava mais impressionada
com as características delas também. Em geral, com poucos recursos,
carregadas de personalidade estética, produzidas com muito
carinho e por meio de parcerias. Isso tudo foi me dando orgulho de
ser da Baixada e de saber que existem esses produtores incríveis
querendo produzir aqui, nas suas cidades.
Cultura RJ: De que forma esse
envolvimento pessoal foi importante para o desenvolvimento do seu
trabalho de conclusão de curso?
ER:Foi
fundamental. No início, para compreender que se tratava de um
movimento cultural era preciso esse olhar de dentro da rede, ou
seja, era preciso estar envolvido com essas produções e para
reconhecer a importância delas na Baixada, foi essencial ser
moradora daqui. E para o desenvolvimento do projeto, foi
importante porque eu conhecia poucas iniciativas e poucas pessoas no
início do pesquisa. O Bion me falou das primeiras iniciativas
que eu mapeei e depois foi me indicando com quem eu deveria conversar
sobre o meu projeto. E cada pessoa nova que eu conversava, me
indicava outras iniciativas, outras pessoas e também contribuía com
alguma percepção sobre o que é fazer cultura na
Baixada. Frequentar as produções também foi muito
significativo, não só para conhecer os produtores pessoalmente mas
para entender como são as ações pessoalmente também.
Cultura
RJ: O seu trabalho se desenvolveu a partir do tema utopia. Para você,
como a utopia se relaciona à Baixada e a seus movimentos
culturais de resistência?
ER:
Eu acredito muito na afirmação de que a utopia serve para caminhar,
do Fernando Birri, acho que essa seja a grande função dela,
fazer com que as pessoas acreditem que existam outras
possibilidades de vida melhores e que busquem essa mudança, mesmo
que as condições a torne impossível. Para fazer cultura
na Baixada é necessário uma grande dose de utopia, porque é tudo
muito difícil. É preciso acreditar em algo maior para produzir
uma ação sem dinheiro, sem apoio, sem estrutura. As ações nascem
dessa vontade de fazer algo que possa algum dia gerar alguma
mudança local e resistem acreditando que elas são importantes para
construir uma nova narrativa sobre Baixada. Sinceramente,
acredito que elas conseguem fazer, nesse quase trabalho de
formiguinha, uma transformação na forma de se olhar para a Baixada
e para a periferia.
Cultura RJ:
Muitas vezes, a visão que se tem da Baixada Fluminense se resume à
violência divulgada pela mídia. Como você vê isso, quando existem
tantos movimentos e coletivos atuando na região, como o mapeamento
procurou mostrar?
ER:
Infelizmente, a mídia colabora muito para a estigmatização da
Baixada como um lugar violento. A Baixada Fluminense tem
inúmeros problemas e um deles é a violência, mas essa não é
a característica que define o que é essa região. Assim, eu
acredito que o que essas ações culturais fazem é justamente
disputar com essa construção da mídia, criando outras narrativas
possíveis, como diz o Jorge Luiz Barbosa. Elas não estão só
querendo fazer uma roda de rap na praça, por exemplo, elas também
querem falar que ali tem arte, que tem pessoas produzindo
música, artes visuais, filmes, enfim, que existem muitas Baixadas
dentro da Baixada. E quando eu consigo reunir essas iniciativas
e mostro para alguém que não é daqui o quanto esse movimento
cultural é intenso, acho que eu também estou colaborando com
esse outro discurso sobre a Baixada.
CulturaRJ: Como você procurou
estruturar o mapeamento? Pode falar um pouco sobre as fases de
produção?
ER: O
mapeamento se dividiu em duas partes: a primeira, que nomeei como
“Catálogo”, é centrada na identificação das produções
culturais, no levantamento de dados básicos delas e na
classificação, organização e catalogação das mesmas; e a
segunda, que chamei de “Análise de dados”, é
dedicada a relacionar os dados obtidos na etapa anterior com outros
governamentais sobre as cidades e cultura.
CulturaRJ: Ao longo do
desenvolvimento da pesquisa, você percebeu traços em comum no
panorama cultural da Baixada? Quais?
ER: Percebi que as iniciativas tinham
algumas características em comum, como por exemplo, a atuação de
alguns coletivos em uma cidade, mas com alguns dos seus
integrantes sendo moradores de outras, a atuação de algumas pessoas
em mais de um coletivo ou ação, a apropriação, por parte da
iniciativas, de alguns locais como espaços culturais e uma
resignificação do seu uso, a comprovação da existência uma
rede de colaboração entre essas iniciativas, um grande aglomerado
de iniciativas que surgem no governo do presidente Lula, e nesse
caso, acaba sugerindo que o projeto de pontos de cultura, do
Ministério da Cultura, pode ter contribuído para o
aparecimento dessas produções.
CulturaRJ: Ao todo, foram encontradas 93 iniciativas e
espaços culturais, como você mesma diz no trabalho, mas você optou
por mapear 65 delas. O que motivou essa escolha? Poderia
comentar um pouco sobre as iniciativas escolhidas?
ER: Quando eu comecei o projeto, eu buscava
apenas por duas características: uma era de que deveriam acontecer
na Baixada e a outra, de que seriam independentes. Entretanto,
falar sobre independência na cultura é muito delicado porque ela
está sempre sujeita a interpretação de cada coletivo ou de
cada pessoa. Então, a minha co-orientadora, Bárbara Szaniecki,
achou que seria importante eu deixar claro como eu estava
interpretando esse critério. Ele, então, adquiriu os seguinte
sentidos: 1) autonomia nas decisões no gerenciamento das
iniciativas; 2) O surgimento das iniciativas deveriam ter vindo de
moradores, buscando suprir algum tipo de carência cultural local; 3)
As produções deveriam ser uma tentativa de não reproduzir os
mesmos mecanismos da indústria cultural, tanto pela forma de
produzir as ações culturais quanto pela relação entre as
mesmas e seu público. Ao longo da construção do projeto, eu
fui me deparando com uma quantidade muito grande de ações culturais
que já não se assemelhavam tanto entre si e que eu não iria
conseguir dar conta, sozinha e pelo tempo que eu tinha, de alcançar
todos os tipos de produções culturais da Baixada, então
pensei em outros critérios que pudessem admitir pelo menos a maioria
das ações que eu já havia mapeado. Alguns desses critérios
foram: que fossem ações urbanas e voltadas para a juventude, que
trabalhassem na valorização de artistas locais e que fossem
gratuitas para o público. Por fim, algumas dessas 93 ficaram de
fora por falta de informações. E aquelas que eu nem consegui
conhecer a tempo do projeto, provavelmente, foi por se tratarem de
ações muito locais ou por terem tido uma vida curta ou por
estarem fora da minha rede de contato.
CulturaRJ: O projeto gráfico
também fazia parte do trabalho final, e você escolheu o fanzine,
uma forma de comunicação muito utilizada na Baixada. Como você
procurou estruturar esse fanzine? Que aspectos escolheu destacar?
ER: No
final do mapeamento, eu tinha conseguido muita informação sobre
essas produções e ela precisava estar reunida e integrada num mesmo
suporte, e ainda de forma clara e simples. Eu tentei dar um aspecto
mais didático à leitura dos resultados do mapeamento, assim, dividi
o fanzine em 3 capítulos: no primeiro (“Cada um na sua”)
são apresentadas as informações básicas envolvidas na pesquisa,
como as cidades da Baixada, os coletivos envolvidos, os tipos de
expressões culturais mapeados; no segundo (“Geral junto e
misturado”) encontram-se os cruzamentos de dados feitos entre
as informações básicas e mais alguns dados retirados do
catálogo ou outros sobre cultura; no terceiro (“Caderno de
Geral”) há um catálogo com as informações completas
sobre cada iniciativa mapeada.
Cultura RJ: Para você, como o
design, aliado a diferentes formas de comunicação, pode ajudar a
lançar luz sobre estas e outras manifestações culturais mais
locais?
ER: Acho que o design pode ter um papel
importante na democratização da informação, pensando em
possibilidades que possam ajudar as pessoas a não apenas
acessarem e compreenderem qualquer tipo de conhecimento, mas também
a auxiliá-las na produção e disponibilização desse
conhecimento de forma autônoma. Ou seja, pensar em recursos para que
as pessoas consigam revelar e compartilhar, elas próprias para
o mundo, as particularidades dos seus bairros e das suas cidades.
Cultura
RJ: Como tem sido a recepção dos artistas locais ao mapeamento?
ER: Tem
sido muito bom. É sempre enriquecedor conversar com os produtores e
artistas. Eu sei o quanto o trabalho foi grande, mas cada vez que
converso sobre ele, percebo que ainda é muito simples. Sempre que
converso com alguém, sinto isso que ele deveria ter sido mais.
Ele já é importante, mas ele deveria ter desdobramentos. Ouço que
ele não poderia ficar restrito a um trabalho de faculdade,
porque um mapeamento cultural é um instrumento importante para se
pensar em políticas públicas para a cultura. Enfim, conversar
sobre ele é sempre instigante e provocador.
Cultura RJ: Quais são
seus próximos planos?
ER:
Penso em dar continuidade a esse projeto de mapeamento, mas com
outros métodos menos centralizados, mais colaborativo. Inclusive,
sei que existe um projeto assim em andamento com o pessoal do
Cineclube Mate com Angu, então, a intenção é pensar nisso junto
com eles. Existem outros projetos que se relacionam com
identidade, afeto e cidades da Baixada, mas isso ainda está bem no
início. E continuar produzindo o Buraco, pensar na comemoração
de dez anos e em outros planos de produção cultural por aqui.
Cultura RJ: Algo mais que queira
destacar?
ER:
Acho que só tenho que agradecer imensamente a esses produtores
incríveis da Baixada, pela dedicação, resistência e amor que eles
têm pelo que fazem e pela inspiração que são para mim. E a
minha orientadora, Zoy Anastassakis, pelo estímulo e pela confiança.
Entrevista: Danielle Veras para o portal Cultura.RJ