GILBERTO GIL EM CAXIAS
“Ahn, e a lá aí… O cara tocou em Copacabana num vai tocar em Caxias?”, brincava eu com qualquer um que me perguntava que história era essa de que Gilberto Gil iria tocar numa praça pública de Caxias por aqueles dias. Essa era, obviamente, uma resposta do tipo brincadeira na defensiva, porque eu mesmo andava me perguntando: é isso mesmo que tão falando?
Isso foi no começo de 1992, quando Gil lançou o icônico Parabolicamará, lançado no final do ano anterior, disco incrível onde ele já antecipava várias das questões que viriam à tona com a Internet dali a pouco anos. Aliás, a própria imagem da capa do LP, uma mulher com um balaio na cabeça, sendo que esse balaio remetendo a uma antena parabólica, era um ícone de grande força. Uma imagem que dali a uns três anos ficaria sedimentada na cultura brasileira com a revolução do manguebit e seu caranguejos conectados via Chico Science e Nação Zumbi.
E o show de lançamento do Parabolicamará no Rio de Janeiro aconteceu na Praia de Copacabana, uma megaprodução, com dois sensacionais telões e todo o resto a que os shows do cara tem direito, incluindo a excelência da banda que o acompanhava então (embora em todas as épocas Gil teve bandas fenomenais que o acompanhavam).
Fui a esse show com o mulão incrível de sempre, uma galera que se encontrava pelo menos duas vezes por semana em shows de graça, seja nas Quintas do BNDES ou no Som das Ondas, no Parque Garota de Ipanema. Naqueles tempos do auge do neoliberalismo, catar show de graça era a onda principal de quem gostava de música e não tinha dinheiro; mas isso é outro assunto.
Parabolicamará foi um dos muitos shows que fui em praias do Rio, mas esse marcou muito porque era um deslumbre mesmo, de uma força com alto poder de sacode.
Daí que depois de alguns dias desse show acachapante aparecem na Avenida Brasil uns outdoors anunciando: Gilberto Gil em Caxias. Porra, como assim??? E aí começaram as especulações, as perguntas, os assuntamentos.
E em algum momento amigos infiltrados nas esferas de poder foram trazendo as informações de bastidores. O evento tinha a ver com as comemorações da filiação do Gil ao Partido Verde e aqui em Dallas quem ficou na direção do partido era a Dalva Lazzaroni, cujo marido era um empresário que atuava nos meios políticos. Dalva era de uma família tradicional da cidade, tinha sido vereadora, ocupou uns cargos públicos e escreveu livros. Com ela, o PV de certa forma poderia firmar com força na cidade – o que acabou não acontecendo. Mas essa articulação é que foi o canal pra o show acontecer por aqui. E outra informação muito legal pra gente, trazida pelos nossos informantes, foi a de que na reunião que definiu onde seria o show na cidade um cara sugeriu a Praça da Apoteose, na Vila São Luis, usando um argumento muito maneiro. Na praça tinha rolado um festival de música que deu muito certo e era muito prestigiado naquele momento. Sim, essa foi particularmente uma informação que nos fez muito bem. Nunca tinha havido nenhum show dessa natureza nessa praça, tirante o Sidney Magal que esteve na inauguração da dita cuja, em 82. Mas o que tava em voga era o sucesso da realização das três edições do Rock’n Vila, evento nascido numa conversa nossa de botequim e liderado pelo grande Renato Gralha Araújo. Uma noite, entre uma cerveja e outra, Renato teve esse insight: ali cabia um palco para um festival de rock. E assim foi. O Rock’n Vila foi um evento bem marcante pra época, mas aí já é outro assunto; o que vale aqui é a lembrança de que é sempre assim né: os ditos “malucos” vêem lá na frente e depois o formal vem na esteira.
O fato é que começou a onda, o burburinho sobre o show de Gil em Caxias e a expectativa era muito grande.
Eu vinha do impacto do deslumbre que foi o show na praia e estava que não me aguentava. E, curiosamente, achava que o show na Vila seria um voz e violão, uma dessas oportunidades únicas de ver o Mestre em ação com seu violão afiado (sim, pouco se fala, mas Gil também é exímio violonista). Pensei quase uma espécie de talk-show, talvez cantando algumas músicas do disco novo, mas centrando nas suas principais e mais conhecidas canções… Reflexo de uma autoestima baixa? Pessimismo? Não sei afirmar, mas, morando e vivendo na região, as expectativas para tudo eram mesmo sempre baixas…
Como eu morava bem pertinho da Praça fui logo de manhãzinha pra ver o palco, sentir o clima da montagem e aí quando dobrei a Carlos Esteves, que na época se chamava Avenidas das Américas… porra! Me deparo com um meeeeeeega palco na praça – e com direito aos megatelões que tinha visto na praia umas semanas antes. E aí caiu a ficha de que ERA O SHOW COMPLETO DE LANÇAMENTO DO PARABOLICAMARÁ! EM CAXIAS!
Imaginar algo dessa magnitude na cidade nessa época era uma parada absolutamente impensável. Bom, eu ainda não conhecia a história do Dia da Criação, mas isso também já é outro assunto.
Numa das zilhões de reformas da praça, nessa época a prefeitura tinha transformado um chafariz que tinha lá num inexplicável montinho, nunca entendi isso; era feio e estranho, um pequeno morro sem nenhum propósito, mas o fato é que era uma pequena elevação que deixava você com uma visão de cima, estratégica. Lógico que nós, os cria da área, ficamos lá nesse lugar, praticamente um camarote, um ponto privilegiado para curtir o show.
Quando o show começou, a energia do ar era de magia pura, imagine. Milhares de pessoas absurdadas, emocionadas com a apresentação altamente tesuda do Gil e sua banda. Mas aí, no meio do show um momento de imensa tensão: um estrondo, a imagem de fogo num quiosque da praça e um princípio de tumulto e correria. Senti que muita gente passou pelos mesmos segundos de angústia que eu: pronto, agora fudeu; vai dar merda, gente vai ser pisoteada, amanhã o noticiário: show em Caxias causa mortes e tal e a fama do lugar indo ainda mais pra lama e… Mas o pensamento durou pouco. Graças ao sagaz camera-man que do palco sacou na hora o que tinha acontecido e apontou a câmera para o quiosque imediatamente. Daí, com as imagens projetadas no telão as pessoas viram que não tinha sido nada de atentado ou coisa assim; apenas um botijão de gás tinha explodido e causado o barulho e de fato, tinha subido um fogo que despertava medo, caso você não soubesse a origem. Mas tudo controlado, ninguém machucado. E nessa mesma hora de princípio de tumulto, ainda no meio de uma música, Gil mandou uma mensagem para as pessoas se acalmarem, não correrem, pois era apenas um acidente pequeno, já controlado; e, ainda no meio da música, que não lembro qual era, ele criou um improviso sobre o fogo de Xangô, com a banda sustentando, uma parada que era genial e as pessoas entraram em delírio com aquela intervenção.
No mais o show foi a pancada esperada e ainda mais um pouco. Digo isso porque foi o show na íntegra que vi em Copacabana, mas nessa noite em Caxias, depois do bis, Gil emendou ainda, sei lá, quase uma hora a mais de música. Foi uma noite catártica.
Os organizadores ou as autoridades, não lembro mais, estimaram em quinze mil pessoas nessa noite mais que especial, com gente vinda de todos os cantos da Baixada e do Rio, tribos diversas, famílias inteiras, malucadas em geral…
Depois dessa noite sei que já rolou muita coisa na Praça da Apoteose, na mítica Vila São Luis, mas nada nunca superou Gilberto Gil naquele dia em Caxias.
Pra celebrar essa lembrança vou até reouvir esse discão do Mestre. “Antes mundo era pequeno, porque Terra era grande / Hoje o mundo é muito grande, porque Terra é pequena / do tamanho da antena parabolicamará / ê volta do mundo…” .
[ heraldo hb – junho 2022 ]