Ei, garçom, cospe na comida!
Capítulo de hoje: Ei, garçom, cospe na comida!
(ver a primeira parte em http://lurdinha.org/site/?p=3933)
– Voltamos aqui… Mídia Ninja…
Agora as imagens estão péssimas, vemos uma sequencia de figuras paradas, mas vamos acompanhar pelo som.
– Aqui tem um turista tirando foto na frente da manifestação, que beleza! A gente vai resolver esse problema da transmissão, vamos ver se a gente consegue um 4G, mas por enquanto é o que a gente tem. O pessoal continua aqui empolgado!
Mais empolgado estava eu vendo aquilo. E não só eu, vários ratões em volta também. Mas onde foi este protesto? – UUUUUUUH! – muitas vaias de repente, e a menina ninja explica:
– Apareceu um pessoal na janela filmando a manifestação, e todo mundo se encaminhou pra janela para vaiar – Uh-uh vai se foder!
A câmera foca uma sacada do luxuoso hotel Copacabana Palace, onde silhuetas observavam. Mais um mega símbolo da velha ostentação carioca deflagrado pelos manifestantes – Essas são umas pessoas que vieram provocar a manifestação – ela explica. Foi então que começou um grande coro:
– Ei, garçom, cospe na comida! – Imagino esses gritos ainda ecoando em cada quarto, cada corredor, gravado em cada tijolo e cada tímpano daquele lugar.
E eu aqui tão distante e tão perto, vendo tudo por um milagre da internet. Tenho a impressão de que acendi um pavio, não sei onde isso pode parar. Tudo o que fiz foi mostrar esse vídeo para os ratos. Esse mundo é muito mais estranho do que podemos imaginar.
– O que que você sabe do Jacob Barata? – pergunta a menina ninja para um dos manifestantes.
– Cara, (pelo o que) eu sei dele, é um dos caras que concentra a maioria das empresas de ônibus da cidade, há muitos anos. Então, (se duvidar) ele é um inimigo muito maior do que o Cabral, o Cabral é temporário, é um fantoche, vai sair e vai entrar outro. Quem manda nessa porra é o Jacob Barata, é a Odebrecht… as empresas. Então é genial a gente estar aqui no casamento da filha do maior empresário de ônibus! É muito bom o movimento indo pra cima dos empresários também, não só em cima dos políticos, porque o político é pago justamente pra ser o otário que fica na frente tomando porrada, enquanto os caras ganham o dinheiro. A gente fala de corrupto, mas quem é o corruptor? Quem está corrompendo, hein?
– Quem é que corrompe, né?! Essa é a pergunta que a gente tem que começar a se fazer, né! – E o povo canta:
– Ôôô, a festa acabou, a festa acabo-ou!
Outro manifestante se manifesta:
– Eu acho que a gente tá aprendendo – e eu me incluo nessa – a manifestar, a unir os esforços e cada um com seu know-how conseguir atingir o calcanhar dessas pessoas. Porque é muito difícil lutar contra essa repressão toda, sabe, é muito forte. É muita violência com os manifestantes. Acho muito bom, tá num lugar de turismo, de visibilidade internacional. Tem que mostrar que é um casamento de ladrão que tá rolando aqui, é o dinheiro do povo. E o cara ta ali tomando pro-seco, tomando whiski, acenando pra gente, quer dizer, ele compactua com esse modelo, com essa vergonha que é isso. Que é uma vergonha. O cara tinha que ter vergonha de estar nessa festa. O cara rouba ha mais de 20 anos o Rio de Janeiro e tá aí tomando champagne na nossa cara. Tá na hora de fazer isso mesmo!
E nós íamos fazer, eu e os ratos. Algo inédito iria acontecer naquele estranho mundo onde me meti, ninguém sabia o que deveria ser feito, mas todos sentiram que algo deveria ser feito. Um germe revolucionário se espalhou entre os ratos.
Não é possível que tenham se passado apenas quatro dias e quatro noites, desde que desci do elevador do meu prédio. Tanta coisa aconteceu de lá pra cá, que perdi completamente a noção de tempo. Que fim de semana peculiar esse que eu tive, mais estranho do que eu jamais poderia imaginar. Vou do início.
Tudo começou quando aquela multidão de puxa-sacos, e todos os digníssimos nobres decidiram mexer a enorme bunda gorda e caminhar até o Palácio Laranjeiras. Uma complicação surreal para sair, e depois de um tempo infinito, se afastaram.
Foi quando tomei minha primeira grande atitude revolucionária: Eu não segui o fluxo.
Não estava muito interessado em mais uma sessão de orgias auto-canibalistas, com aqueles nobres apodrecidos e decadentes. Ir para o Palácio Laranjeiras, e também ao Parque Burle, com aquela galera seria enterrar-me ainda mais nessa lama. Então me mantive parado enquanto o Palácio Guanabara foi ficando vazio e imundo. Fui ficando por ali, em um luxuoso salão Luís XVI, entre raspas, restos, excrementos de todo tipo. Foi quando os ratos tomaram conta do lugar.
Lindo de se ver: Aquele rico salão tomado pelos ratos! Mas não são esses ratos normais não. São ratazanas que têm envergadura humana, com dois metros de altura, responsáveis pela limpeza. Fizeram gestos para que eu os ajudasse. Eu não estava muito disposto, depois de presenciar cenas altamente indigestas, estava passando mal, quando uma ratazana bem velhinha me deu um pedaço de torta de frango – Come isso! Obedeci cheio de náuseas, mas aquilo me animou, me salvou como um remédio milagroso.
– Uau! Posso comer torta de frango aqui?
– Mas é claro, né! – Todos riram do comentário ingênuo – é hora da ceia dos escravos. A mesa é posta lá fora, no jardim. Bom, já está quase saindo uma torta como essa, com catupiry e iogurte, já deve estar saindo – Esta senhora, ninguém menos que Tia Ciata, estava armando todas as condições para surgir uma roda de samba, o que não demorou para acontecer. Saí do palácio.
Cheguei ao jardim, era nada mais que uma clareira no mato, fizeram uma enorme mesa de madeira com um longo banco. Enquanto todos se ajeitavam começou uma batucada improvisada bem legal. Outros instrumentos apareceram e saiu a torta da tia Ciata, entre outros quitutes, tudo dividido entre todos. Não bastasse meu espanto, ainda me ofereceram cauim, uma bebida alcoólica azeda, receita tupinambá. E a roda foi crescendo, todos cantavam velhos sambas juntos. Aquilo foi ficando excelente. Fiz amizade com algumas pessoas, todos vinham conversar, querer saber da minha história, fiquei extremamente à vontade.
Juro que não me lembro quando vi Lurdinha pela primeira vez. Só me lembro de ficarmos conversando por horas sem parar. Como não tinha pra onde ir, Lurdinha me convidou para ir para seu apartamento. Ela morava sozinha e trabalhava no palácio. Ratinha independente, em todos os sentidos. Então fomos de mãos dadas para sua casinha, num sobrado ali perto. As ruas eram todas de terra batida, só haviam algumas casas, tudo iluminado com lampião que as pessoas carregavam na mão.
Passamos a sexta-feira inteira sem querer saber do mundo exterior, vivemos um daqueles momentos que todo ser humano merece viver (sempre). No fim de tarde, ela me levou para conhecer uma loja fantástica. Eu jamais poderia imaginar pra onde ela estava me levando.
Entramos na rua Paissandu, observando a fila de palmeiras recém plantadas. Numa ponta da rua, o Palácio Guanabara, na outra a Baía de Guanabara. Fomos até a praia do Flamengo, vocês não acreditam que praia incrível era essa, antes do aterro. Contei para ela o que iria acontecer, que no futuro vão escavar o morro do Castelo e colocar aqui para fazer um enorme aterro mar adentro.
– Que imaginação você tem! – Ela me respondeu – Veja, ali está a loja.
Quando entrei, demorou um tempo até a ficha cair: Eu estava numa Lan House.
Era inacreditável. Acessei meu e-mail, minha rede social, confesso que achei tudo muito estranho, distante mesmo, como se não pertencesse mais a mim, embora eu reconhecesse tudo. No entanto estava em êxtase com a descoberta. Lurdinha me mostrou que fez vários perfis falsos, cada um com uma personalidade e uma biografia própria, que viagem. Ninguém naquele lugar usa um perfil real. Acabei me vendo na “obrigação” de criar uns fakes também. Não pense que ficamos ali o dia todo, ela me levou pra conhecer toda a cidade. Na verdade, esse era o objetivo. O fato é que fomos para o sobrado dela.
No dia seguinte, domingo 14 de julho – dia da revolução francesa, eu estava curioso por notícias da manifestação no Palácio Guanabara, o desenrolar dos acontecimentos e lembrei da Mídia Ninja. Entrei no site, não havia nada rolando ao vivo. Cliquei num ícone aleatório. E a voz da menina ninja ecoou pela sala barulhenta da lan house.
– Voltamos aqui… Mídia Ninja… – Foi quando vi o filme da manifestação em Copacabana pela primeira vez. Durante essa exibição, muitos ratos foram se interessando e se aglomerando por trás dos meus ombros, alguns decoravam o link e iam ver por si mesmo afastados, alguém editou o vídeo e então começou uma coisa inesperada:
– Ei, garçom, cospe na comida! – Os ratos começaram a gritar na lan house enquanto viam o vídeo, e passavam pra outros. Virou um refrão engraçado entre a gente. Fomos embora achando aquilo jocoso e ao mesmo tempo poderoso demais. Os ratos entoavam este mantra por todo lado.
– Você tem que ver o lugar onde eu trabalho – Lurdinha me convidou antes de dormir – e você vai entender por que os ratos estão tão revoltados.
Foi por isso que hoje, segunda-feira, estava eu de volta ao imponente Palácio Guanabara.
E agora? Pra onde vai esta história? Mande sugestões!
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