25 de Dezembro de 1987

Imbariê, Duque de Caxias. Rio de Janeiro.

À leitora.

A biblioteca estava salvando vidas. Eu estava tentando salvar a biblioteca, então, aos 15 anos de idade, me sentia responsável por aqueles que a biblioteca estava salvando. Naquela tarde quente de verão, eu estava andando pelas ruas de Imbariê, um bairro da periferia do Rio de Janeiro, colhendo assinaturas para um abaixo assinado a favor da biblioteca pública.

Há alguns meses atrás uma epidemia de depressão começou a assolar os moradores de Imbariê. O único posto de saúde do bairro estava lotado de pessoas feridas pelas tentativas de suicídio e por corpos daqueles que conseguiram êxito. A coordenadora do posto afirmou que morreram mais de mil pessoas em três meses. O desespero era total. Vários parentes dos mortos chegavam ao bairro para enterrar os entes queridos. Em frente ao posto amontoavam-se os carros das funerárias, os agentes de planos de saúde e vários repórteres. As farmácias nunca lucraram tanto. As igrejas, os terreiros, as reuniões religiosas eram disputadas por pessoas desesperadas. O ar estava intragável, muito baixo astral. Tinha uma tristeza nas ruas e um choro desesperador como de quem pede socorro.

Eu fui uma destas pessoas que cai em depressão. Os sintomas eram desconhecidos para mim e para meus pais. Começou com uma indisposição. Uma vontade de fazer nada. Não queria comer, não queria tomar banho, não queria ir a escola, não queria sair de casa, e tudo isto era encarado como preguiça por todos em minha volta. Depois vieram a insônia e a frustação de acordar das breves horas de sono que tinha. A ansiedade tomou conta de mim, e eu não sabia onde desaguar aquilo. Eu me sentia como uma represa e me afogava cada dia nela. Até que me veio, pela primeira vez, a ideia do suicídio. E não demorou muito para eu por esta ideia em prática.

Ao acordar no posto de saúde vi meus pais chorando muito. Lembro do meu irmão mais novo ler para mim enquanto eu estava me recuperando. Lembro que apesar da ferida no pulso e da dopagem eu acordei no outro dia muito melhor e percebi pela minha ansiedade de rever meu irmão que a leitura tinha me feito bem. Então, mesmo a contragosto dos meus pais, eu fui a única biblioteca pública do bairro para ler. Eu nunca tinha lido um livro inteiro na minha vida. Acredito que 99% do meu bairro sequer tinha começado a ler um. Aquela experiência foi incrível. A represa que havia em mim, passou a não mais existir, a medida em que eu frequentava a biblioteca, e agora eu nadava de braçadas em mundos que eu nunca imaginei. Não havia dúvidas que a biblioteca tinha me salvado e que talvez ela poderia salvar todo o bairro da epidemia.

O trabalho de levar o maior número de pessoas possível para a biblioteca foi grande, mas logo que os resultados vieram a noticia que havia cura para aquela epidemia, na biblioteca, se espalhou e organizaram a visitação por períodos de duas horas diárias, por pessoa. Em dois meses a epidemia no bairro havia sido controlada. A tristeza das ruas deu lugar as conversas alegres e cheias de personagens dos livros. As escolas voltaram a funcionar e os alunos começaram a ter desempenhos muito melhores. Os saques aos supermercados, os assaltos às casas, os estupros e roubos, também acabaram. Imbariê nunca tinha vivido um momento tão bom. As pessoas organizavam saraus nas ruas e nas casas. Organizavam cineclubes nas escolas e em espaços públicos. Multiplicou o número de coletivos culturais e sociais. Parecia que a alta estima de cada um tinha voltado assim como o orgulho de morar naquele bairro.

Em meio a tudo isto o prefeito da cidade resolveu fechar a biblioteca de Imbariê. Ele alegou que dada a epidemia que tinha matado centenas de pessoas no bairro, ele iria transferir a verba da biblioteca para equipar melhor o posto de saúde. Quando eu soube fiquei desesperado. Eu tinha que fazer alguma coisa. Achei irônico ter de escolher entre saúde e cultura. Eu queria as duas coisas.

A biblioteca estava salvando vidas. Eu estava tentando salvar a biblioteca, então, aos 15 anos de idade, me sentia responsável por aqueles que a biblioteca estava salvando. Naquela tarde quente de verão, eu estava andando pelas ruas de Imbariê, um bairro da periferia do Rio de Janeiro, colhendo assinaturas para um abaixo assinado a favor da biblioteca pública. Não sei mensurar quantas assinaturas eu colhi, não sei dizer como está Imbariê hoje, mas esta carta póstuma é para te contar sobre esta biblioteca que curava.

Obs: Caso esta carta chegue até você publique-a por favor!

Com carinho, João.

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Por Osmar Paulino / Insta: @osmar__paulino / Email: osmargeo@yahoo.com

 


Osmar Paulino

Professor de Geografia, Articulador Cultural, Produtor do FAIM, Festival de Artes de Imbariê

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