A Baixada Filma – Fomento para a produção de cinema e audiovisual na periferia

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manifesto baixada filma - Cine Odeon - audiovisual da Baixada

A territorialização do orçamento público para o audiovisual foi pautada pelo movimento Baixada Filma, um ajuntamento de profissionais do audiovisual da Baixada Fluminense, região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, no ano de 2018. A pauta retorna em 2023, durante o processo de implementação da Lei Complementar nº 195/2022, a Lei Paulo Gustavo, na região. Este movimento acontece em razão da reivindicação de fomento da produção audiovisual das periferias, que é produzida às margens dos programas de fomento oficiais.

O fomento à produção cinematográfica e audiovisual brasileira é uma das principais funções da ANCINE, Agência Nacional do Cinema, como mostra o artigo “A ANCINE na fomentação e regulação da atividade cinematográfica e audiovisual” de Nathália Maria Barreto Da Rocha, que estuda os mecanismos legais que orientam a atuação da ANCINE para o desenvolvimento do setor e que visam estimular a produção cultural nacional. No texto a autora discorre sobre uma série de políticas culturais e fundos de arrecadação de recursos que são investidos na produção cinematográfica brasileira, e faz algumas reflexões que cabem a pauta sobre o acesso ao fomento:

Outra característica que vale ser ressaltada é a difícil inserção de novas empresas no mercado pelas próprias características inerente ao setor, tais como; insegurança quanto ao retorno financeiro, alto custo de produção e comercialização, oscilação de demanda e, principalmente a predominância de empresas de alto poder econômico que exercem controle em diversas partes da cadeia.” P. 57. Rocha, Nathália M.B, 2017.

Para acessar essas políticas os realizadores se cadastram na agência em um processo simples. A concessão de recursos, seja do fomento direto ou indireto, é feita a empresas com CNAEs (Classificação Nacional de Atividades Econômicas) específicos em audiovisual. Os CNAEs são permitidos a pessoas jurídicas inscritas como EI, ME, LTDA, não sendo permitido as pessoas jurídicas MEI (Microempreendedor individual). A captação também obedece a uma lógica de produção que se baseia na sua progressão, ou seja, as produtoras realizadoras conseguem captar recursos a partir do volume de investimentos e patrocinadores que agregam em suas produções. Quanto maior o volume de captação da empresa mais é autorizado a captar.

Considerando que, nos territórios populares, as periferias, assim como no interior, não há um ambiente de estímulo à economia criativa, visto a ausência de legislações que estimulem a abertura de empresas do setor criativo, de leis municipais de incentivo à cultura, através do ISS e de fomento direto municipal. Antes da Lei Aldir Blanc, 2020, somente dois editais foram executados pelo poder público municipal em toda a história dos 13 municípios da região, Nova Iguaçu em 2010 e Duque de Caxias em 2020. Os equipamentos públicos como teatros e centros culturais são escassos e não dão conta dos quase 4 milhões de habitantes. Somado as condições socioeconômicas da população periférica a criação de empresas com CNAEs específicos em audiovisual torna-se mais viável em um município que concentra condições para mantê-la. Isso porque para obter esse código de serviço a empresa e exige um maior investimento em sua abertura e manutenção, como por exemplo a prestação de serviços mensais de um profissional da contabilidade.

Diante a este contexto a prestação de serviços tem oferta maior na capital, bem como a criação de empreendimentos audiovisuais é mais viável por concentrar equipamentos, incentivos fiscais e ambiente de estímulo à indústria criativa. Somado à proximidade, mas com precária mobilidade urbana, os profissionais acabam migrando para a Cidade do Rio de Janeiro, tanto para prestação de serviços como para o empreendedorismo.

Considerando que o fomento ao audiovisual brasileiro, regulado pela ANCINE, se dá através das empresas com CNAEs específicos, a região encontra dificuldades estruturais para acessar este fomento. Em razão deste contexto em 2018 o movimento Baixada Filma surgiu como uma forma de reivindicação de acesso ao fomento e um diálogo com instituições como a Ancine e a SAV (Secretaria do Audiovisual) sobre o Cinema nas periferias. Durante a sessão de lançamento dos curtas-metragens produzidos no âmbito dos programas Territórios Culturais RJ e Favela Criativa, onde 1/3 dos filmes selecionados eram da região, os diretores levantaram uma faixa “Pela Territorialização do orçamento audiovisual” no palco do simbólico Cinema Odeon, na Cinelândia, Cidade do Rio de Janeiro. Em seguida as mulheres do movimento, assinando como Baixada Filma Por Elas, organizaram o Circuito Baixada Filma, no Centro de Artes Municipal Hélio Oiticica, com sessão, exposição e um debate que aprofundou as pautas.

Analisando a disposição das salas comerciais de cinema na região da Baixada Fluminense, segundo o Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro, publicado pela ANCINE, em 2021 Duque de Caxias lidera a lista de Municípios com mais de 500 mil habitantes que tem a pior relação habitante por sala de exibição, muita gente para poucas salas, e Nova Iguaçu aparece em quinto lugar. Dos Municípios mais populosos sem sala de exibição Belford Roxo é o único município brasileiro com mais de 500 mil habitantes, Magé aparece em quinto lugar. Já dos Complexos que obtiveram maior público, o Multiplex Duque De Caxias, está em terceiro lugar, e o Kinoplex Nova Iguaçu em nono. Especificamente na região Sudeste dos Municípios com maior relação público por sala São João de Meriti ocupa o segundo lugar, Duque de Caxias o terceiro e Nova Iguaçu o quinto. Todas as cidades citadas compõem a região da Baixada Fluminense, onde se constatam que há poucas salas para atender a população, que lota os cinemas, demonstrando que há público, mas não há equipamentos para exibição.

Apesar da falta de infraestrutura e de recursos a região apresenta uma vasta produção local. O site Tela BXD, criado pelo cineclubista caxiense Heraldo HB, reúne 138 vídeos, entre filmes, clipes, web séries, em uma mostra dessa produção. O Cineclubismo local tem uma identidade própria dentro das produções cineclubistas brasileiras, agregando outras linguagens, como música, poesia, artes visuais, tornando-se assim um palco para novos artistas e mobilizador de público importante. Esse movimento foi registrado no curta “Cineclubismo na BF” da iguaçuana Carol Vilamaro, de 2018. O documentário mostra a atuação de seis dos principais Cineclubes da Baixada Fluminense: Cineclube Mate com Angu, de Caxias; Cineclube Buraco do Getúlio, de Nova Iguaçu; Cineclube Donana, de Belford Roxo; Cineclube Cinema de Guerrilha, de São João de Meriti; Cineclube Xuxu com Xis, de Austin e Facção Feminista Cineclube, de Duque de Caxias. Inovações no audiovisual de caráter popular foram realizadas também no território, como a TV Olho, a primeira TV Comunitária do Brasil, registrado no cinema com o documentário homônimo, do caxiense Rodrigo Dutra, e a TV Maxambomba, de 1986, uma experiencia em TV comunitária visitada em 1996 por um dos maiores linguistas contemporâneos, Noam Chomsky, por representar metodologias inovadoras de comunicação popular.

Apesar dos esforços para o diálogo e o reconhecimento da importância da produção local baixadense não houve nenhuma ação estruturante. No ano seguinte, 2019, o setor enfrentou uma grave crise, com a descontinuação das políticas públicas para o audiovisual brasileiro com a nova gestão governamental. A crise no setor cultural provocada pela pandemia da COVID 19 agravou ainda mais a situação. Em reação o movimento cultural mobilizou a sociedade para a elaboração e sanção de medidas em apoio ao setor, como a Lei Aldir Blanc e a Lei complementar nº 195, de 8 de Julho de 2022, a Lei Paulo Gustavo. Para sanar a crise e LPG viabiliza o maior investimento direto no setor audiovisual da história do Brasil.

A pauta sobre o acesso ao fomento pelos profissionais da periferia retorna durante o processo de implementação da LPG, que prevê a participação da sociedade civil. Mesmo sem a obrigatoriedade as oitivas e propostas de implementação realizadas pela gestão pública apontavam a tendência de se seguir a logica do fomento tradicional regulado pela ANCINE. Neste processo o movimento Baixada Filma produz uma carta intitulada “Por um cinema e audiovisual descentralizados” onde solicita a inclusão da produção periférica, feita sem o fomento oficial, realizadas por profissionais organizados em coletivos informais, empreendedores MEI e empreendedores que migraram para a capital mas atuam na região, na distribuição dos recursos da Lei Paulo Gustavo.

Embora a pauta do acesso ao fomento seja o tema central do movimento Baixada Filma, diversos outros aspectos desta produção local são de suma importância para a sua estruturação. A produção com pouco ou nenhum investimento financeiro público provoca inovações nos modos de fazer cinema e audiovisual, que refletem desigualdades sociais, mas que também carregam a produção do conhecimento popular. Os filmes e cineclubes fabulam narrativas que embasam essas outras lógicas de produção, que privilegiam o impacto social, econômico e cultural que causa o ato de se fazer arte em território popular. O estudo de caso da Drª Liliane Leroux, empreendido com o coletivo Cinema de Guerrilha da Baixada, demonstra bem esse modo de produção, descolado das lógicas da indústria, mas que participa ativamente da cinematografia brasileira, produzindo dezenas de filmes, participando de festivais pelo país, muitos deles premiados e veiculados em TV.

Se considerarmos o caráter descentralizado e participativo previsto no artigo nº 1, parágrafo único, na Lei Paulo Gustavo, essa produção periférica deverá ser prevista na distribuição de recursos, prevendo não somente o apoio ao setor afetado pelas graves crises, assim como os trabalhadores e a produção independente, que não dispõem de mecanismos oficiais de proteção que garantam a sua continuidade. Se analisarmos os mecanismos de fomento direto oficiais, como o Fundo Setorial do Audiovisual, a fomento à produção independente da Baixada Fluminense e de outras periferias brasileiras, é uma necessidade a ser atendida, tanto de forma emergencial, devido as consequências das graves crises, quanto de forma estruturante, a começar pelo estudo e produção de dados oficiais sobre esta produção independente brasileira, como apontado:

O FSA possui uma especial importância para a ANCINE como agência reguladora, pois ele permite que sejam direcionados recursos, de forma direta, para qualquer setor que se entenda necessário, a partir dos dados e estudos que são coletados pela própria ANCINE, fazendo assim regulação econômica do setor.” P. 46. Rocha, Nathália M.B, 2017.

Em um contexto político que nos encontramos no ano de 2023, de recuperação de crises econômicas, políticas e sanitárias, os trabalhadores da cultura no Brasil atravessaram diversas e profundas dificuldades para manter suas profissões, empreendimentos e realizações. Ainda assim protagonizaram mobilizações que resultaram em leis que apontam soluções para a recuperação, com investimento público e foco na estruturação do mercado cultural. Deste modo a maior parcela desses trabalhadores, informais e microempreendedores, não pode ficar de fora dessa recuperação, sendo a LPG e os sistemas de fomento público destinados a fortalecer o setor para a auto sustentabilidade, mas que só é possível diante de um investimento público que abarque toda a categoria de profissionais e empreendimentos, inclusive os que ainda não se inseriram nas lógicas tradicionais de fomento e os que inovaram criando outras lógicas que resultam em produtos e ações culturais que compõem a produção cinematográfica e audiovisual brasileira produzida nas periferias. Encerro este ensaio com uma frase que encerra o vídeo-manifesto produzido pelo Baixada Filma em 2018: O Rio de Janeiro é mais do que a cidade do Rio de Janeiro.

Referências bibliográficas

ROCHA, Nathalia M. B. A ANCINE NA FOMENTAÇÃO E REGULAÇÃO DA ATIVIDADE CINEMATOGRÁFICA E AUDIOVISUAL, IFRJ Bacharelado em Produção Cultural, 2017.

Anuário Estatístico do Cinema Brasileiro 2021. Brasil, ANCINE; Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual.

Tela BXD. Tela BXD, 2023. Disponível em: https://telabxd.com.br/categorias/

Brasil, Lu. Cine Odeon Ficou Pequeno. Lurdinha.Org, 2018. Disponível em:

https://lurdinha.org/site/cine-odeon-ficou-pequeno-baixadafilma/

Moreira, Giordana. A Baixada Filma, Por Elas. Lurdinha, 2018. Disponível em:

https://lurdinha.org/site/a-baixada-filma-por-elas/

Lei 195 de 8 de Julho de 2022. Planalto, 2022. Disponível em:

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp195.htm

Carta Pública por um cinema e audiovisual descentralizados. Baixada Filma, 2023. Disponível em:

https://baixadafilma.com.br/carta-publica-por-um-cinema-e-audiovisual-descentralizados/

Leroux, Liliane. Táticas do Cinema De Guerrilha da Baixada Para Transitar Entre O Popular E O Artístico. Revista Polêmica, vol 17, nº 1, 2017. Disponível em:

https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/28300/20344

BAIXADA FILMA, 2018. Disponível em: https://baixadafilma.com.br/video/

Vilamaro, Carol. Cineclubismo na BF, documentário, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=crPgsiB2H9c

Giordana Moreira


Giordana Moreira

Produtora Cultural, fundadora da Roque Pense! rede de Mulheres Produtoras Culturais, e cria da Baixada Fluminense de onde faz rock, cultura urbana e feminismos para o mundo.

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