avolta

Aqueles olhos negros me fitando, sinto falta. Eram meus despertadores. Todos os dias quando saía do adormecimento era com o peso deles que começava o dia. Tinha um diálogo com eles diferente do que tinha com seu dono, como se eles tivessem vida própria. Daqueles olhos negros sinto falta.

O avião sobrevoa a cidade e eu imaginariamente me coloco em um trapézio parecendo ser a responsável por todos verem a cidade do meu ponto de vista. Eu sou o guia desse grupo de trapezistas que fazem acrobacias pelo céu da cidade.

O avião prepara-se para aterrissar e uma voz ecoa pelos corredores nos pedindo para apertarmos o cinto e não fumarmos. É o fim do espetáculo dos trapezistas. No picadeiro, aquele número da mulher que se finge de boneco e se deixa enfiar numa mala me faz lembrar dos meus fantasmas que certamente vão sair das malas onde eu os deixei, recuperando a vida que os tinha abandonado. Vim, vini, vinci! É o que espero.

Recupero em instantes a lembrança do que nunca tinha esquecido. O passeio pela cidade, a mão dada naturalmente como um cordão umbilical; os olhos negros serenos. A descida pela parte de trás dos ônibus, a risada de quem cometeu uma travessura sem maiores implicações, o gozo pela galeria do metrô e os ecos que se fantasmagorizam assustando os passantes. Os olhos negros indecifráveis.

Fui atrás do meu sonho de menina, o palhaço depois de anos raptou o coração de menina travessa que eu trazia dentro de mim e hoje volto nem sei porque, talvez para reencontrar a mulher que eu já era sem me dar conta.

– Hoje tem marmelada!

– Tem sim senhor!

– Hoje tem goiabada?

– Tem sim senhor!

– E o palhaço o que é?

– É ladrão de mulher!

Um dia eu disse- viva o circo! – e fui conhecer o mundo, o sucesso, a glória, a segurança de uma vida estável. E hoje volto como quem se apresenta em um circo de periferia com o mesmo orgulho e profissionalismo que se apresentaria no Cirque du Soleil, o melhor de todos.

… passageiros vindos de Paris, desembarquem pelo portão…

No setor de espera um corpo cansado de aguardar, coberto por um paletó amarrotado se agita, passa a mão na cabeça, vai até o lavatório mais próximo, joga uma água no rosto, espanta o cansaço, e segue na direção do portão de desembarque, conduzindo os mesmos olhos negros que após tanto tempo recuperaram um antigo brilho, que parecia guardado para esta ocasião.


Djair Lima

Djair Lima

dcali é profeta.

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