Em linhas gerais, tens os traços iguais aos dela
Coisas triviais, encantos banais, tão iguais aos que ela traz
E pra meu desgosto, estampas no rosto, um sorriso similar
Que me faz te odiar e de ti precisar por causa dela.”
Fernando Pellon

– Porra, Augusto! Já fez o que eu te mandei? Já deu banho no cachorro? Nem a louça você lavou, ainda!
– Calma amor, tô indo…
A verdade era que Augusto já não aguentava mais isso, e o que é pior, ele já não aguentava mais isso há quase dez anos. De casamento marcado com Ritinha com quem namorava desde os tempos do ginasial, conheceu Amanda. Que linda ela era. A garota mais fantástica que já conhecera. Só tinha conhecido mulheres belas e geniais assim em alguns filmes da Sessão da Tarde. Imediatamente se encantou e, em dois meses, estavam casados. Os dois primeiros anos foram ótimos, mas, depois, o relacionamento caminhou em progressão geométrica para todos os tipos de abusos, desmandes e chantagens emocionais por parte dela. O que ainda mantinha Augusto firme nisso era a delícia da lembrança de quando a conheceu: parecia que, no fundo, a imagem daquela que o encantou ainda permanecia mais viva do que nunca nos, agora, um pouco vazios, corredores de suas memórias. Nessa rotina de sofrimentos e devaneios perdidos se passaram longos doze anos.
Saiu correndo do consultório de Laércio depois que seu telefone tocou. Era Lourdes, a diarista, que, aos berros dizia:
– Corre seu Augusto, pra dar uma mãozinha aqui. Dona Amanda caiu da escada e desmaiou!
Laércio era seu amigo desde o primário, estudaram juntos e mantiveram essa relação fraterna até então. No mínimo, duas vezes por semana, Augusto visitava Laércio, que tinha um consultório na Etelvina Chaves. Lá, ele confidenciava, numa espécie de desabafo, tudo pelo que vinha passando em sua vida. Laércio ouvia por horas, principalmente naquilo que dizia respeito ao relacionamento conjugal do amigo. Nunca havia casado. Segundo ele, só faria isso quando encontrasse a mulher perfeita, mas, pela idade, talvez sentisse que já perdera o timing, e até falasse isso só pra justificar a solteirice que parecia curtir. Augusto, como o próspero empresário que se tornara ao longo dos anos, só relatava vitórias nos negócios, que, de fato, jamais deixara de prosperar. De resto, era tudo sempre mais do mesmo.
Como morava no Jardim 25 de Agosto, em pouco tempo Augusto chegou em casa todo suado, sendo recebido por Lourdes que disse:
– Seu Augusto, eu acabei acionando a ambulância. Usei aquele número que o senhor deixou na geladeira, dona Amanda não se mexia e foi levada pro Caxias D’or.
– Fez bem, Lourdes. Obrigado por ter calma pra ter pensado nisso.
Na mesma hora, Augusto ligou para Laércio dizendo o que havia acontecido e chegaram, quase simultaneamente, ao hospital. Depois de alguns minutos, foram recebidos pelo médico especialista que realizara o atendimento e, chamados a uma sala, ouviram:
– Foi diagnosticada de uma concussão cerebral. Mas, a pancada na cabeça, ao cair da escada, foi muito forte e decidimos mantê-la em coma induzido, porém, não há motivo para alarde, pois se trata de um procedimento preventivo de praxe. Recomendo que o senhor vá pra casa e descanse, pois não há nada a ser feito no momento. Não se preocupem – disse o médico apertando a mão de Augusto rapidamente, numa forma de despedida e encerramento de conversa que não dava chances para mais questionamentos.
No hall do hospital, Augusto olhava para cara de Laércio que, devido a tantos anos de amizade, entendeu perfeitamente sua pergunta sem palavras, e como também era um especialista na área, disse:
– É isso! Fique tranquilo, irmão. Essas coisas são mais comuns do que imaginamos e não há motivos para preocupação. Vou acompanhar todo o quadro e os exames. Vamos pra casa.
A espaçonave era um pouco maior que sua casa, e lançava sobre seu quarto uma luz clarinha, tão densa que parecia ter propriedades terapêuticas. Augusto se deixou levar, sentindo uma paz enorme e, nesse momento, acordou. Dormiu de cortinas abertas e o sol da manhã invadia seu quarto, tocando seu corpo em repouso com intensidade e calor. Olhou para o lado e viu Amanda deitada de bruços. As duas mãos sob o queixo, admirando-o:
– Amor, é hoje o nosso salto? –disse ela.
Ele quase havia esquecido, contudo, ainda era cedo e não iriam se atrasar para o salto de paraquedas. Sua rotina, agora, era totalmente diferente de duas semanas atrás, tempo que Amanda havia voltado do Hospital para casa. Depois de uma semana internada, ficando durante esse período, alguns dias em coma, Amanda era outra. Ela havia deixado esse quadro clínico com uma espécie de amnésia magnifica, que a fazia lembrar de algumas coisas e, de outras não. Era um esquecimento seletivo que tinha em sua face mais brilhante o fato de que, de longe, ela, sequer, lembrava quaisquer traços da mulher com a qual Augusto vivera seus últimos dez anos.
A “nova Amanda” era encantadora, amorosa, espiritualizada, aventureira e toda sorte de adjetivos que possam ser usados quando nos referimos a pessoas realmente bacanas. Ela, além disso tudo, a todo o momento, demonstrava seu amor por Augusto com várias formas de carinho com os quais ele a muito desacostumara. Temendo deixar a esposa confusa, ao decorrer do dia, visitava diversas vezes o banheiro, onde se trancava e chorava emocionado e apaixonado, não sabendo a quem agradecer por viver esse sonho real.
O sol já não secava mais a argila. Todo dia era dia de aventura, de jogar conversa fora na praia, ver o sol se pôr juntinhos, até a noite chegar pra dizer que todo ciclo podia ser refeito de maneira ainda melhor. Mesmo a antiga casinha de campo que possuíam na Região Serrana e que, há tempos, não via vivalma, era visitada regularmente, nos mais inopinados dias e já não lembrava aquela habitação triste e sem vida de outrora. Se, por um lado, Augusto vivia a fase mais plena de sua vida, uma coisa ainda lhe preocupava: quanto tempo esse maravilhoso estado mental de Amanda perduraria?
Por conta de sua nova rotina, suas visitas ao amigo Laércio já não eram tão constantes, e, quando eram feitas, Augusto tocava sempre no assunto que o afligia. Mas Laércio, interessado na nova fase do amigo, só queria saber quais eram as novas aventuras e viagens de Augusto. Ouvia maravilhado por horas como era fabulosa aquela mulher. Por vezes, dava até dicas de viagens a lugares incríveis, de onde Augusto ligava pra ele, dizendo como era o clima, o que estavam fazendo, e todos os costumes do local.
Quando Augusto demorava, o próprio Laércio ligava para saber. Vendo a agonia do amigo sobre a incerteza de seu futuro ao lado da esposa, e diante da constante insistência sobre alguma informação mais precisa que pudesse usar como parâmetro, Laércio pediu que fizessem exames mais caros e detalhados para que ele pudesse avaliar com precisão o quadro. Quando os exames já estavam em suas mãos, Augusto foi chamado a seu consultório, e, o que ouviu não lhe agradou nada:
– Olha rapaz, analisei as tomografias com calma e parece uma lesão reversível. Nesse caso, se o que lhe preocupa é a Amanda voltar a ser o que era, essa preocupação tem embasamento cientifico, pois os exames dão certeza de que o que a tornou essa mulher fantástica foi a concussão. Logo, posso afirmar que ela voltará ao estado “normal”, se é que você me entende…
– E, quanto tempo tenho, até que isso ocorra? É possível precisar?
– Analisei a recuperação diária da homeostase, sabe? Esses lances mais técnicos, enfim… Eu diria que, aproximadamente, uns dois meses.
– Porra, cara, o que que eu faço? Não posso perder essa mulher! Praquela jararaca, eu não volto nunca mais! – disse Augusto com os olhos marejadamente vermelhos e batendo impacientemente na mesa.
– Calma amigo. Isso você tem que decidir desde já, pois a coisa é inevitável.
– Então, eu já sei o que vou fazer! Vou torrar a maioria de meus bens! Deixarei apenas o básico para ter uma vida boa e curtirei esses dois meses de maneira intensa, como nenhum outro casal de Caxias já viveu. Em uma semana liquido tudo. A Amanda merece e ela não vai ser opor a assinar o que for necessário. No fim dos dois meses eu vou-me embora. Não vou aguentar ver a Amanda partindo e deixando no lugar a mulher com quem vivi nos últimos anos.
Pouco mais de uma semana depois, o telefone de Augusto tocou, era Laércio:
– E aí, rapá? O que resolveu da vida? Tá aonde?
– Você não vai imaginar. Tô no Principado de Mônaco, tomando um vinhozinho. Amanhã voamos pro Cairo.
– Meu Deus! Quero saber cada detalhe dessas aventuras. Se você não me ligar eu vou te perturbar, hein?!
–Valeu, irmão, desculpe, mas tenho que desligar agora. O tempo é curto e temos muito pra viver! Um abração!
Sempre, antes de dormir, Augusto ligava pro seu melhor amigo e confidente, que adorava suas histórias. Laércio ficava super feliz e orgulhoso. Sentia-se fazendo parte desse sonho. E, assim, o tempo passou: Mônaco, Cairo, Toulon, Barcelona, Barbacena, Alpes Suíços, Fernando de Noronha e outros tantos lugares onde sempre se hospedavam nos hotéis mais românticos ou sofisticados.
Passado o prazo calculado pelo amigo, Augusto decidiu partir. Parou pra pensar bem sobre o prejuízo emocional que teria vendo a agora verdadeira Amanda desaparecer, e resolveu ir morar sozinho em outro estado. Uma nova vida, que jamais poderia macular as recordações do sonho que vivera. Esse patrimônio espiritual de paz, ele fazia questão de carregar consigo pra sempre. Disse a Laércio que, em nome da amizade entre os dois, ia deixar de fazer contato, pois em sua vida nova, queria evitar até o que havia sido bom no passado, em busca de abster-se de qualquer recordação que lhe trouxesse sofrimento, pois previa que a coisa não seria nada fácil.
Era um domingo de sol. Um ano depois da partida de Augusto, ele saíra da ribalta e estava de novo em Caxias. Regressara apenas para resolver a venda de uma casa herdada de sua mãe, onde sua irmã, no intuito de vendê-la, precisava de sua assinatura. No trajeto, a curiosidade foi maior, e ele decidiu passar com o carro lentamente em frente a sua antiga casa com Amanda.
O muro era feito de grades de ferro e ele quase não acreditou no que havia atrás delas: a grama perfeitamente aparada e Laércio num dos canteiros Laterais, que, empunhando um alicate de poda, cuidava de uma roseira carregada. Augusto encostou o veículo junto ao meio fio, um pouco mais à frente e foi ter com o amigo. Ao saltar do carro, pôs sobre a cabeça o capuz do moletom que usava. Encostou-se a um canto da grade e chamava Laércio de maneira sussurrada, tal como um fugitivo ou alguém que não quer ser identificado.
Da parte de cima da casa, onde é a janela de seu antigo quarto, saía uma música agradável, o que fez Laércio demorar a ouvir, até que percebeu o homem que estava em pé diante das grades, e, ao reconhecer nele o amigo, arregalou os olhos como se tivesse vendo alguém que volta do mundo dos mortos:
– Cara o que você está fazendo aqui?
– Porra, eu é que pergunto! Já esqueceu que eu que morava aí? O que você tá fazendo aí?
– Cara, agora eu moro aqui.
– Como assim? E a Amanda, como você pode aguentar essa mulher?
–Desculpe amigo, em nome de tudo que passamos juntos, não posso esconder a verdade. Eu andei analisando tudo de maneira mais profunda e, infelizmente, errei o diagnóstico. A lesão era irreversível – disse ele, com tranquilidade e semblante que só têm aquelas pessoas que alcançaram um altíssimo nível de felicidade na vida.
Feito isso, acompanhando a música que vinha da casa, voltou a assoviar “If You Want to Sing Out, Sing Out” de Cat Stevens.

Ricardo Villa Verde


Ricardo Villa Verde

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