O MUNDO DAS METÁFORAS LITERAIS n°2: O POVO DOMINOU A BOCA

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Zapatista

A diferença entre a nossa resistência e os demais grupos revolucionários é que nós entendemos, muito antes, que o Estado tem dois apoios fundamentais: a Mídia, que é a sua Boca; e as Forças Armadas, que são seu Braço. O modelo de resistência de guerrilha, que foi exitosa com muitos irmãos ao redor do mundo, aprendeu a envenenar o Braço em pequenas doses. Gerava a desordem em destacamentos com sabotagem; plantava o medo em movimentações militares com atentados; e usava para si o conhecimento de território, que o inimigo não conhecia.

Guerras desse tipo não mais possíveis por dois motivos: a capacidade dos Estados de se armarem exponencializou-se de tal maneira que células revolucionárias com esfarrapados barbudos e suas espingardas, por mais românticas que sejam no imaginário militante internacional, não são páreo para armas atômicas e agências de espionagem pós-segunda guerra mundial. Além disso, desde a capilarização das comunicações, os golpes não se dão em manobras militares horizontais; mas sim se deslocam verticalmente sob a pressão de poderosos grupos corporativos de mídia, que controlam corporações envolvidas em negócios do capitalismo industrial e financeiro e em seus espelhos do submundo, o crime organizado na forma do tráfico de drogas, pessoas e armas; e na forma do tráfico de influência, especulação e corrupção, respectivamente. O capitalismo industrial está para o tráfico de pessoas, drogas e armas, assim como o capitalismo financeiro está para o tráfico de influências, a especulação imobiliária e o lobby para financiamento de campanhas políticas. O “duplo”, no sentido xamânico, do Estado são as Máfias; o das Forças Armadas, são os Grupos de Extermínio. O complexo Estado-Máfia que tenta nos controlar também tem sua alma canibal no mesmo envólucro de sua alma não-canibal.

Se o Estado não nega sua face canibal na forma de Códigos Penais Militares que envolvem pena capital para desvios ridículos que suscitem a vaga existência de uma alma pensante sob a farda de seu Braço, por que seria legítimo o Povo ter de negar a sua alma canibal? Não há Constituição que dê o direito ao seu cidadão, sob qualquer hipótese, de pegar em armas contra seu Estado. No conceito dos invasores, a única forma de termos nossos direitos plenificados é através do voto e de outros dispositivos, que baseiam os movimentos de mudanças pela via do consenso de ideias. O ponto-chave é: quem tem maiores Bocas (e não maiores Braços) chega a mais mentes. Investimos, desde sempre, em nossas Bocas, através de rádios comunitárias e redes de solidariedade, e elas já conseguem devorar bastante gente.

O Estado-Máfia resolveu brincar de democracia com seus cidadãos. Achou que o controle de suas principais Bocas (com trocadilho, por favor) controlaria mentes facilmente. No entanto, não esperava que o Povo fosse capaz de dominar a Boca antes de dominar o Braço. O jovem que cresceu lendo sobre os românticos levantes armados do passado, uma utopia para nossos estudantes urbanos politizados de hoje em dia, acordou, e viu, nos seus meios de produzir as suas próprias narrativas, suas armas principais de luta. Câmeras, computadores e redes viraram seus fuzis na selva da internet. A luta se deslocou de um mero sentido simbólico para ações diretas de desestabilização. A engenharia social para espalhar boatos pela rede e fazê-los serem replicados nas Velhas Mídias; as torrentes de material audiovisual que desmentem, em tempo real, inclusive com qualidades estética, técnica e de custo-benefício superiores, a manipulação dos velhos conselhos editoriais; e toda sorte de plenárias em tempo real das redes que organizam a luta em plenárias populares nas ruas, são mais eficazes do que assaltos a banco, sequestro de embaixadores ou trocas de tiros na selva. Levamos a sério nossas virtuais garantias de Liberdade de Expressão. Nós, Povos Originários, não sabíamos que a metáfora era o protocolo da relação dos invasores com seus senhores. Como uma Bíblia, suas Constituições são apanhados de figuras de linguagem metafóricas, que deixam escapar seus processos de descodificação somente a cidadãos especiais que os dominam. Somos radicalmente literais no que tange à nossa dignidade. Agora, nossas Bocas estão bem grandes. O Estado brincou de liberdade, mas quando decidimos usá-la de verdade, mostrou apenas o seu Braço. Não esperava que um dia o jogo fosse virar. Já era, a casa caiu. Ocupamos permanentemente as narrativas sobre as nossas próprias vidas.

Continua…


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