Valeu demais por tudo, mestre Nelson Pereira dos Santos

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Foto pós-sessão de O Amuleto de Ogum, no teatro Raul Cortez, 2014.

Morreu Nelson Pereira dos Santos, um cara foda. Dos maiores cineastas do mundo, um intenso realizador e inqueito pensador sobre o Brasil. Meu mestre número um, o maior.
No meu segundo livro falo dos três impactos que Nelson de certa forma provocou na minha vida, um deles com Vidas Secas, assistido em VHS numa das cabines da Biblioteca do Brizola, adolescência. Junto com uma meia dúzia de filmes que bagunçaram meu espírito e dos amigos comparsas da época (Eles Não Usam Black Tie, A Classe Operária Vai ao Paraíso, Jango, A Hora da Estrela, Marvada Carne, Deus e o Diabo…). A “Biblioteca do Brizola” é onde hoje é a Biblioteca Parque, ali perto da Central, e era o povo que a chamava assim (e quando o povo chama…).
Depois com 15 pra 16 anos, já de carteira assinada e já do grêmio do Instituto de Educação Roberto Silveira, fui convidado pra uma sessão do cineclube Baixada, no finado teatro Procópio Ferreira, no quarto andar da Câmara Municipal de Caxias. Era uma das últimas exibições do cineclube e eram umas latas de cópia em 16mm do Memórias do Cárcere, filme do Nelson baseado no livro do Graciliano Ramos. Foi uma porrada… O barulhinho do projetor rodando e o vigor que o filme trazia me deixaram muito desnorteado na época, desbaratinado, mais do que eu já era, e sinto que foi ali que começou minha vida política por assim dizer. Aliás, revi o filme há pouco tempo e de novo me arrepiaram os cabelos da alma.
E aí tem o capítulo O Amuleto de Ogum, filme rodado e encarnado em Caxias até a medula. No ano 2000 li uma referência a uma frase do Nelson dizendo que considerava Caxias a capital cultural do país. Chapei foi muito com isso e fui atrás da referência, revista Opinião, entrevista com o Jean-Claude Bernardet. Já achava foda tudo do cara e essa frase ficou matutando anos na cachola.
Daí quando nosso cineclube tinha dois anos resolvemos fazer uma sessão na cidade comemorando os trinta anos do Amuleto, com o cineasta presente. Infelizmente não rolou daquela vez, mas isso ficou meio como uma questão de honra. Nesse ano ainda, nosso amigo André foi coordenar um projeto de salas populares de Cinema pelo Rio e a de Caxias seria no centro, na entrada do Lixão. Mandamos um recado direto: em Caxias, a sala ia se chamar Nelson Pereira dos Santos ou a gente ia fazer um barulho dramático – “chantagem” boba que nem precisou ser posta à prova, visto que a sala foi uma das que não foi concluída pelo Estado.
Em 2014, quarenta anos do O Amuleto de Ogum, conseguimos realizar esse sonho: exibir o filme pra galera da cidade, com a presença do mestre, triangulado pelo amigo Wallace. Só esse dia já foi um mix de aventuras dessas de lembrar pra sempre. Desde pegar o cara na Academia Brasileira de Letras, colocar numa van e a van quebrar na Linha Vermelha, com a gente sem graça e ele dizendo com aquela cara zen “Cinema é assim mesmo, gente”. Depois o sujeito descendo em Caxias e olhando a cidade, quatro décadas depois, emocionado, e indo pra uma sessão no Teatro Raul Cortez, que fica exatamente em frente ao lendário Cine Paz, local da primeira e marcante exibição do filme. Sessão que contou com a presença de Tenório Cavalcanti e onde“as paredes do Cinema vibravam”. Nessa sessão de 2014, dentro do nosso Festival, Nelson assistiu ao filme na íntegra e respondeu felizão a uma enxurrada de perguntas da plateia, que incluia uma quantidade grande de jovens. Falou de Chico Santos, o cara que escreveu o argumento do filme, falei de Erley José, o Pai Erley, contou as cenas de ação, com direito à perseguição de automóvel pelas ruas da cidade, as festas de santo. Vendo as imagens desse dia fica nítido o que no momento poderia ser impressão da emoção: o velhinho curtiu demais o programa. Pra gente foi arrepiante tudo, principalmente sentir o carinho que ele tinha com essa cidade e seu povo. Aproveitamos a oportunidade do bate-papo e perguntamos à queima-roupa sobre a frase da entrevista de 74 e ele confirmou: continuava achando que aqui deveria ser considerada a capital cultural do país. A plateia chapou.
Desse encontro surgiu a ideia de documentar essa história do filme O Amuleto de Ogum em Caxias e lembro dele comentando quando contamos nossa intenção: “mas termina logo isso porque eu tô quase indo já”, num tom sem mágoa, sem afetação, sem tentativa de efeito – a percepção de quem tem alto grau de maestria.
Há quatro anos ando envolvido estudando a obra de Nelson, junto com os chapas Igor Barradas e Luisa Pitanga. E posso dizer que cada vez mais me vejo fã do cabra. O respeito ao povo, aos botequins, a busca por um cinema popular brasileiro, a contramão quando todos esperavam uma suposta coerência dogmática, a favela, o mergulho em Graciliano Ramos, Machado de Assis, Jorge Amado, as mil possibilidades da fábula; o domínio da gramática do Cinema; a Umbanda e o Candomblé retratados com respeito e presença; Grande Otelo, que só por isso seria demais; a inclusão nos filmes de gente genial que por pouco não ficou totalmente invisibilizada como Alvaiade, Batatinha, Mestre Pastinha, Zé Keti; a Parati-Pasárgada, os filmes de galera, o O Amuleto de Ogum filmado em Caxias…
Por umas vezes tive a honra de tomar umas cervejas com o mestre, num papo de boteco (“não existiria Cinema sem botequim”), e fico pensando que isso jamais passaria pela cabeça daquele Heraldo lá detrás, do mundo neoliberal arrasa-quarteirão, da falta de perspectivas, moleque enfurnado em Caxias, uma Baixada ainda mais árida que a de hoje, sem parentes importantes, sem casa própria, tímido e com problemas de dicção.
A vida é mesmo também uma aventura e a vida do Nelson é a própria aventura do Cinema no país. Com lições que ainda vão reverberar por décadas.
Lendo, relendo, vendo seus filmes e tomando uma gelada com meu ídolo acabou que, mesmo ídolo, acabei na real o vendo como uma espécie de amigo mais velho, um cúmplice na luta que tanta gente ao longo das décadas vem travando pra fazer arte, pra se divertir e pra construir um país mais humano e com menos desigualdade social.

Valeu demais, Nelson Pereira dos Santos, por tudo, tudo mesmo.

 

Foto pós-sessão de O Amuleto de Ogum, no teatro Raul Cortez, 2014.
Recebendo homenagem pós-sessão de O Amuleto de Ogum, no palco do teatro Raul Cortez, 2014.
Conversando com o público no palco do teatro Raul Cortez, 2014.
Nelson no camarim do teatro Raul Cortez, 2014.
Tomando uma cerveja no camarim do teatro Raul Cortez, 2014.
Nelson Pereira dos Santos com a equipe do Cineclube Mate Com Angu, na ABL, 2016

 


heraldo hb

. Animador cultural, escritor e produtor audiovisual nascido no século XX. .

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