Vai em paz, poeta Valdo Couto

Mais uma perda triste por aqui; nosso amigo poeta Valdo Couto partiu. Tem sido meses puxados nesse sentido. 🙁
Valdelir Ferreira Couto era um amante da poesia, da música brasileira, da conversa, das coisas simples da vida. Um cara agradável demais para se estar por perto, ótimo amigo. Um humanista acima de tudo, desses que não perdem a indignação necessária contra as tiranias, mas que mantém a doçura e o humor de quem tem um coração bom.
Sua última criação diz muito sobre ele: montou um grupo/evento para que as pessoas se encontrassem uma vez por mês para… Conversar. Simples assim. “Mas, Valdo, esse grupo é pra quê?”, “cara, pra gente se encontrar, ué, ouvir música e prosear. Ninguém mais se encontra pra conversar; se a gente não forçar a barra não vamos nos ver ao vivo mais”. Sacada simples, verdadeira e terrivelmente necessária mesmo. Rolaram alguns desses encontros e foram ótimos por isso: um churrasquinho simples, uma cervejinha na tarde de sábado, muita conversa, risos, músicas autorais, causos, puro suco de amizade.
Tem um poema dele que sempre amei, Carona ao Vento, que um dia o grande Canthídio musicou, trocando o nome pra Canção do Poeta. Quando ouvi a primeira vez a versão musical me apaixonei e sempre falava pra ele que se um dia eu gravasse um disco, essa seria a música de abertura.
Sei que ninguém controla o “disjuntor” da vida, que desliga sem que a gente tenha muito o que fazer. Mas, além das complicações cardíacas, Valdo morreu também devido ao descaso com a saúde por parte das estruturas médicas públicas do Rio de Janeiro. É uma tristeza grande misturada com sensação de impotência e uma raiva grande também.
Curiosamente, encontrei dia desses nos arquivos público da cidade umas crônicas que ele escreveu no Jornal O Patrono, no final dos anos 1990. Deixo o trecho de uma delas onde dá pra sentir um pouco da visão aguda e humanista do cara. E ainda uma dose de amarga ironia sobre a “fila do cardiologista”, praticamente uma antecipação mórbida de seus últimos dias nessa existência.
Vai na Paz e na Poesia, querido amigo.
“Hoje nos grandes centros urbanos travam-se batalhas diárias entre pessoas e carros, pulmões e fumaça e, o pior, pessoas e pessoas por um pedaço de calçada, por um lugar em um ônibus, num elevador, na fila do banco, do restaurante e, finalmente na fila do cardiologista. Os que sobrevivem se acotovelam na fila do velório para dar o último adeus ao que não resistiu às filas do banco, do restaurante, não tendo tempo de chegar à fila do cardiologista. Ao que não resistiu aos carros, à fumaça e à falta de um lugar para caminhar na calçada, a falta de um lugar no ônibus.
Me preocupa o próximo passo a ser dado nessa insensata caminhada: A LOUCURA TOTAL E COLETIVA. Nos preparamos para recebê-la como se fosse a ordem natural das coisas ou nos lançamos em uma fervorosa tentativa de resgatarmos nossa origem, nossa identidade, nossa condição de SERES HUMANOS?
Aguardo sugestões”
Valdo Couto, Jornal O Patrono, 1998
CARONA AO VENTO (Canção do Poeta)
Quem traz no sangue e na alma
As cicatrizes do amor
As mesmas que causam tristezas
As mesmas que causam dor
Não se entrega às mazelas
Que a vida a nós determina
Vê, nos olhos da menina
A fonte de inspiração
Atravessa o furacão
Rompe, imune, a tempestade
Caminha mesmo nas trevas
Tropeça, cai, se levanta
Chora, mas também canta
Encarna o bem e a maldade.
Cultiva a nobre planta
Da mais pura amizade.
Quem traz na alma e no sangue
Aquilo que não se cala
A palavra que se fala
Mesmo quando a boca sangra
Rasga, feroz, a garganta
Mesmo quando o corpo dói
A raiva que nos corrói
Quando a decência falha
Quando a maldade se espalha
Se retrai, sofre por dentro
Espera o justo momento
E o grito contido ecoa,
Pede carona ao vento,
Voa veloz, feito seta.
E então, sorrindo e cantando,
Lá vai de novo o poeta.
(Valdo Couto)