O Poder Pouco Comentado dos Sem Voto
Talvez você nunca tenha parado para pensar que dos quatro poderes da República – o Executivo, o Legislativo, o Judiciário e a Mídia – dois deles são sistematicamente escrachados e bombardeados há décadas, enquanto dois deles passam ilesos a críticas consistentes sobre suas atuações nos momentos políticos do país. Curiosamente, apenas dois deles são eleitos pelo voto popular…
Repare que já é do senso comum falar mal dos deputados, senadores, vereadores, prefeitos, governadores e presidentes, esses que são eleitos pelo povo e chamados popularmente de “os políticos”. Mas não é comum ver críticas aos juízes e aos donos das grandes corporações de Comunicação. Coincidência?
Em momentos de crise política como a atual vale uma pequena reflexão sobre esse fato praticamente silenciado dos debates públicos.
É óbvio que os políticos pelo país a dentro, nos gabinetes, nas câmaras municipais e na câmara federal, são inegavelmente material riquíssimo para qualquer programa de humor, para qualquer filme pastelão, para qualquer editorial de jornal da manhã, para qualquer papo exorcizador de mesa de bar. É imensa a quantidade de figuras bizarras, de personagens grotescos e lamentáveis pessoas que detém mandato e são representantes da vontade popular, com todas as suas implicações. É mesmo tosco e deprimente.
Mas essa é a parte visível da história, a parte que é consenso: a qualidade dos políticos é abaixo do sofrível. Mas isso põe todos no mesmo patamar? Sempre foi assim e sempre será? Quem e como se concede mandato a um parlamentar ou um executivo, qual o mecanismo? É a sina miserável e imutável do brasileiro?
Admitamos que sim, os políticos são assim mesmo e estamos fadados a isso ad eternum. Esse é um pensamento que vem se consolidando ao longo do século e parece sedimentado na sociedade. Ponto.
Mas aí, pensemos no Poder Judiciário, um dos poderes que não tem voto. Você vê algum questionamento sério ao Poder Judiciário no país via grande imprensa? Sem nem entrar em discussão de faixa salarial e méritos pessoais – mas há estímulo a se questionar porque vivem a aumentar seus próprios salários e votarem sempre mais benefícios, como auxílio moradia, auxílio creche, auxílio-alimentação, plano de saúde suplementar, vale paletó, entre outros? Porque se diferenciam tanto do resto dos trabalhadores do país?
Quando não presenciamos as cenas lamentáveis de juízes que incorporam a velha piada de que tem gente que acha que é Deus e muitos juízes têm certeza. Carteiradas sempre rotineiras. Corportivismo extremo. Regalias nobiliárquicas. Cargos vitalícios. Salários nababescos. Paraíso de uma meritocracia altamente questionável, haja vista casos como o da nova desembargadora do Rio de Janeiro, filha de um importante ministro da Corte federal, cujo áudio de seu “teste” pode ser encontrado na Internet… Constrangedor. Parece que a toga é um manto mágico onde o ungido representa um recorte de gente acima do bem e do mal, o que inclui famílias tradicionais que há muitas décadas reproduzem seus espaços de poder e seus rígidos valores conservadores. Uma discussão sobre o racismo brasileiro, por exemplo, um dos grandes problemas do país, nem chega a ser um assunto digno de sequer ser comentado. E pensar que no Brasil em toda a sua história só há cinco anos teve pela primeira vez uma mulher negra desembargadora. E pense na raridade que é um Joaquim Barbosa no segmento judiciário brasileiro – e como isso não chega a ser pauta prioritária em um setor que trata de Justiça… Pense no caso Rafael Vieira, preso até hoje injustamente e sem nenhuma adesão solidária por parte do segmento jurídico – um dos casos bizarros que põem à mostra as vísceras elitistas da maior parte do poder judiciário brasileiro.
Sobre o outro poder sem voto, a Mídia, o quarto poder, vale a definição de que se trata do baronato da imprensa, o poder constituído pelos donos do oligopólio nacional dos meios de Comunicação.
Com os últimos acontecimentos, os críticos têm lembrado sempre da tradição golpista dessa grande impresa que vem desde os episódios dramáticos de 1954, depois repetidos em 1961 e por fim em explanados em 1964, onde teve papel decisivo no golpe civil-militar. Episódio, aliás, lembrado em editorial de confissão de culpa e pedido de desculpas do jornal O Globo no aniversário de cinquenta anos da virada de mesa que afundou o país numa truculenta ditadura. Mas observando bem esse papel dá para retroceder ao começo do século passado, onde o jovem Lima Barreto sentiu o peso dessa instituição por conta de suas críticas ferinas, feitas sobretudo no genial livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Também vale lembrar o tratamento extremamente preconceituoso dado pela imprensa patronal à Revolta de Canudos e à Revolta da Chibata, sempre do ponto de vista das elites que abominavam o povo e suas manifestações políticas, culturais e religiosas. É óbvio que muitos jornalistas foram fundamentais para o desenvolvimento da democracia no país, mas a maioria dos órgãos patronais da Imprensa sempre jogaram o jogo de interesses das elites do país. Isso é História.
O fato é que o monopólio das empresas de Comunicação do país são um dos principais agentes das despolitização do povo. Inegável sobretudo atualmente, bastando ver o descompasso entre a vida do povo, as demandas do país e um dia como um domingo na TV aberta brasileira, por exemplo.
No atual momento, o jogo está mais do que na cara. O incensamento de figuras salvadoras da pátria, a seletividade escrachada de denúncias, a criação de pautas supostas de um jornalismo de ficção e o ataque raivoso às causas populares estão hoje cada vez mais cristalinos. Não à toa, todas as menções a se ter uma lei de regulamentação de meios no país é bombardeada agressivamente.
Fato: os sem voto estão em polvorosa.
O fato de estarmos presenciando um golpe juridíco-midiático às claras diz muito sobre o pano de fundo da luta pela democracia no país. Diz muito sobre os grupos que relutam historicamente em “dividir o bolo”, em ceder o mínimo que seja para o andar de baixo da pirâmide social. Diz muito sobre o racismo brutal arraigado na sociedade que impede avanços e condena boa parte da juventude do país a ser alvos matáveis preferencialmente. Diz muito sobre um recorte social que se opõe ao aumento de direitos básicos. Diz muito sobre os sem voto.
Os sem voto estão na base e na condução de mais um golpe no país. Os sem voto querem a manutenção do processo de despolitização do povo. Querem a manutenção do perverso mecanismo de dominação que é baseado em algumas premissas quase sempre deixadas invisíveis e sem nexo causa-efeito: sucateameno da Educação; massificação e padronização da informação via monopólio dos meios de comunicação de massa, privatização do Estado; e massacre diário contra a auto-estima do povo. Dessa combinação derivam várias ideologias “inocentes” como a ideia de que o brasileiro é um ser cordial e que a História do Brasil é um mar de rosas… Os sem voto são sempre os primeiros a propagar a ideia de um povo alienado, que não sabe votar, que precisa ser conduzido por uma elite esclarecida. Repudiam a constatação de que a História do Brasil é sangrenta, um longo processo que envolve centenas de rebeliões e revoltas debeladas sempre debaixo de muita morte, tortura e pancada.
As máscaras estão caindo numa velocidade galopante e momentos como esse são depuradores fantásticos. E tem ficado estranho observar quem só critica o Executivo e o Legislativo nessa loucura toda…
Daí que os anarquistas, os deleuzianos blasé, os revoltados on line, os liberais radicais, os trotkistas extremos – vários segmentos têm mil motivações e formulações filosóficas contra “tudo o que está aí”, a favor de “jogar uma bomba no Congresso”, fazer campanha pra “não reeleger filhadaputa nenhum”, “reduzir o Estado paternalista”, “lutar pela revolução genuína” e variações do tema. Nem discuto aqui os graus de validez e os de sensatez de propostas como essas – respeito várias (não todas). E sim, a democracia representativa está em constante questionamento, principalmente em tempos de tecnologias da informação cada vez mais rápidas e debatidas. O que é a ágora hoje em dia é tema premente para se pensar no novo mundo que se avizinha.
Mas o fato é que, quer queiramos ou não, a forma como a atuação de um parlamentar pode influenciar nossas vidas é cabal e imediata. Não há em um quadro a curto ou médio prazos o cenário de que a ação dos parlamentos não afetará a nossa vida e a de nossos familiares. Negar isso é como a criança que fecha os olhos com a ilusão de que assim uma situação ou um monstro vão desaparecer magicamente.
Quando um deputado propõe o fim da exigência de rotulagem de produtos trangênicos, isso vira uma realidade para todos, quer você tenha votado ou não nele. Idem para quando um senador propõe a liberação das armas ou quando uma bancada propõe o fim de um programa sério e longamente debatido com a sociedade sobre direitos reprodutivos. Quando um governador opta por dar isenção fiscal bilionária para empresas e sucateia a saúde pública isso tem efeito imediato em nossas vidas.
Se conseguiremos qualificar o processo eleitoral ou se vamos tentar eleger candidatos comprometidos com as causas populares é uma questão em aberto. Críticas ao processo democrático sempre caberão, mas há dúvidas se a negação do processo representativo pode nos ajudar a sair da situação em que nos encontramos. Pelo menos não dá pra escorraçar o processo eleitoral e deixar ilesos de críticas os poderes jurídicos e midiáticos, os sem voto, aqueles que não temos sequer como pensar em escolher.
A desmoralização da política com o viés da despolitização da sociedade é terreno fértil para aventureiros, sub-celebridades, jogadadores de futebol e afins se lançarem candidatos e ocuparem parlamentos e gabinetes. Mas isso nem é o mais grave da história. O complicante mesmo é que nesse cenário despolitizado e frágil, com o clima do vale-tudo e do “é tudo a mesma coisa”, aí é que entra fácil em campo um dos mais nefastos problemas do país, que está no cerne da corrupção, que é o financiamento privado de campanha.
E com aquilo que é o mais perverso e danoso: a invisibilização total desse mecanismo, o silêncio proposital. Quando as grandes tvs e os grandes jornais colocam tudo no mesmo patamar de demonização, quando diariamente fazem tudo parecer farinha do mesmo saco, fica escondido da população o fato de que vai ficando cada vez mais fácil se financiar um candidato com chances de ser eleito. E quem financia um político vai estar sempre na fila preferencial dos benefícios que um mandato pode conferir de retorno do investimento. Fica a reflexão do porquê esse assunto não é abordado na grande imprensa… Porque aí o negócio vai ficando complicado… Mexer nesse vespeiro é deixar à tona várias pistas dos drenos do dinheiro público que vai para os mesmos setores de sempre. Setores que são bem representados, bem apessoados, com pedigree, com a cara dos que têm dinheiro e poder.
Setores que, talvez por não terem voto, historicamente precisam recorrer a rupturas do processo democrático para estarem sempre por dentro das veias do Estado. Setores que historicamente sonham com que o Estado seja apenas uma fachada e que as chaves dos cofres fiquem direto, sem intermediários populistas, nas mãos dos filhos das oligarquias e dos sacerdotes do Deus Mercado. E esse sim, Deus Mercado, é continuamente santificado pelas máquinas na mão dos poderes sem voto.
Na dúvida, fique atento aos sem voto.