O encontro de Jararaca e Ratinho no céu
É com enorme prazer que a Lurdinha publica O Encontro de Jararaca e Ratinho do Céu, famoso texto do jornalista Eldemar de Souza, cuja história remete não só a dois grandes artistas do país, mas diz respeito também a duas figuras solares que viveram em Duque de Caxias durante décadas.
Além de ser fascinado por História e já ter lido o texto de Eldemar e a monografia feita sobre a dupla, também tive a felicidade de ter me encantado com o acervo pessoal de Ratinho, sob a guarda de uma amiga, Zélia Cavalcanti, herdeira do legado do grande músico e agitador cultural (esse lado dele é pouco conhecido). Acervo que contém pérolas sobre cultura brasileira, sobre os meios de comunicação, sobre a cidade de Duque de Caxias e sobre a grande figura que foi o Ratinho. Mas isso vai em algum outro momento. É difícil mensurar como a dupla era popular de norte a sul do país.
Para contextualizar a obra, seguem palavras do autor, Eldemar de Souza, crítico musical, colaborador da Lurdinha e colecionador de histórias incríveis sobre música brasileira e bastidores da imprensa nacional.
L.: Fala aí, cara.
Eldemar: Pois é, o livro foi publicado pela primeira vez, com patrocínio do então deputado estadual Silvério do Espírito Santo, à época vizinho da dupla, no Parque Lafayette. O lançamento foi na Praça da Emancipação, na manhã de um domingo ensolarado, com uma cachaçada doida que entrou pela tarde, envolvendo boa parte dos passantes, procedentes da feira. O dia? 28 de maio de 1978. Portanto, no sábado passado completou 33 anos.
Depois, saíram mais duas edições. A primeira delas, em 1983, pela Funarte, inserido na íntegra na monografia Jararaca e Ratinho, a grande dupla caipira, de Sonia Regina Calazães, e a segunda, em 2005, por iniciativa de Pedro Marcílio Leite. Agora, com a publicação na LURDINHA, passo a considerar o trabalho editado pela quarta vez. Isto dá uma média de mais de uma edição por década. Tá de bom tamanho, né?
L.: Você que pesquisou a dupla, fala um pouquinho dos figuras.
Eldemar: Jararaca era alagoano e morreu em 1977. Já Ratinho, pernambucano, morreu em 72.
Ratinho era um músico extraordinário, tocava sax-soprano e, eventualmente, clarineta. Escreveu choros imortais, como o clássico Saxofone, por que choras?
Jararaca era poeta, compositor e humorista. É autor de Mamãe eu quero (em parceria com o maestro Vicente Paiva), uma das marchinhas mais cantadas do carnaval brasileiro desde 1937, quando foi lançada. Seu sucesso ultrapassou fronteiras, já que foi gravada em outros países, entre os quais a Alemanha, Dinamarca e Estados Unidos. Neste último, foi gravada por vários intérpretes, entre eles Bing Crosby, que morreu cinco dias depois do Jararaca. Daí, eu citá-lo no final do texto.
L.: E o texto?
Eldemar: Apesar de ter publicado outros livros, até hoje sou apresentado como o autor de Jararaca & Ratinho no céu. Creio que tenho a mesma sina de Ariano Suassuna, que mesmo sendo autor de tantas obras conhecidas é apresentado por aí afora, como o autor de Auto da Compadecida, desde a estreia da peça, em 1956. Pelamordedeus, longe de mim me comparar ao célebre paraibano.
No mais, é isso. Abraço grande.
Valeu, Eldemar! E voltaremos ao assunto Jararaca e Ratinho – aguardem.
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Para baixar o texto em pdf: http://lurdinha.org/O-encontro-de-Jararaca-e-Ratinho-no-ceu__ Eldemar-de-Souza.pdf
Para ler on line, segue na íntegra, abaixo.
Para ouvir o clássico imortal Saxofone, por que Choras?, do Ratinho, clique aqui: http://www.youtube.com/watch?v=1slxsGSX3eQ
Nessa página da Funarte tem alguns áudios da dupla: http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/discos-projeto-almirante/jararaca-e-ratinho-1983/
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O encontro de Jararaca e Ratinho no céu
Bateram à porta do céu
São Pedro disse: “Já vai!”
Limpou as barbas do mel
Que havia lhe dado o Pai,
Levantou com toda a calma,
Lavando as mãos na travessa,
Pois sabia que era alma
E alma nunca tem pressa.
Retirou então a estaca
Que reforçava o portão
E em pé, de chapéu na mão,
Lá estava o Jararaca.
São Pedro tão logo viu
Reconheceu o artista:
“Este veio do Brasil,
Eu o conheço de vista.
Já sei que hoje tem festa
De entrar pela noite inteira,
Alguns vão cantar seresta
Outros dançar gafieira.
Jararaca que estava
Ansioso para entrar
Tratou logo de falar
Pro santo que o espiava:
“Me dá licença, meu santo!
Gostaria de entrar.
Eu só preciso de um canto
Para poder descansar.
Passei 81 anos
Por sobre a face da Terra.
Tive sonhos, tive planos
E assisti a duas guerras.
Cá pra nós, fui comunista,
Mas isso lá é pecado?”
Contou um caso engraçado
Com sua verve de artista.
Pedro riu aos borbotões
E foi logo lhe abraçando.
E ele com seus botões :
“Já sei que estou agradando.
De fato, logo em seguida
Pedro disse: “Venha cá!”
E numa estrada comprida
Começaram a caminhar.
Jararaca acompanhou
Todos os passos de Pedro,
Que à sombra de um arvoredo
Parou um pouco e sentou.
Passaram mais de uma hora
Naquela sombra gostosa.
São Pedro dormiu, embora
Jararaca todo prosa,
Por estar acompanhado
Do velho santo chaveiro
Tenha ficado acordado
Entre feliz e penseiro.
Até que chegou Mateus,
Trazendo às mãos numa carta,
Saudações de Santa Marta
E as boas vindas de Deus.
Dali São Pedro voltou
Pra junto da portaria
E Mateus comunicou:
“Agora sou eu o guia!”
Jararaca foi levado
Pelos jardins do infinito
E dizia deslumbrado:
“Que bonito! Que bonito!
Mas nem de longe previa
Que além de tanta beleza,
Uma agradável surpresa
Esperava ao fim do dia.
Chegaram ao sopé de um monte
De proporção gigantesca,
Avizinhado a uma fonte
Onde corria água fresca.
Subiram bem lentamente,
Assim como passeando:
São Mateus ia na frente,
Jararaca acompanhando.
Vez por outra conversavam
Sobre coisas de além vida
Que aliviava a subida,
Na medida em que avançavam.
Em plena noite fechada
Chegaram ao fim do caminho.
Por ter vencido a escalada
Jararaca riu sozinho.
Não tinha o corpo cansado
Nem respirava ofegante,
Tava até bem humorado,
Discretamente elegante.
“Que lugar maravilhoso!”
Disse ele pra o santo .
De fato, era um recanto
De traçado harmonioso.
São Mateus beijou-lhe o rosto
Em sinal de despedida.
Na sequência, bem disposto,
Daria início à descida.
Mas, antes disse pro velho:
“Você fica por aqui.
Eu não vou lhe dar conselho,
Cada um sabe de si”.
Pediu que o recém-chegado
Procurasse o seu retiro
E após um leve suspiro
Retirou-se sossegado.
Jararaca, incontinente,
Se pôs em marcha na estrada,
Que daria, certamente,
Em sua eterna morada,
Enquanto ia, pensava
No que Mateus lhe dissera
E até acrescentava:
“Valeu a pena a espera!
O descanso e, finalmente,
Uma vida plena e franca…”
Mas nisso, uma casa branca
Pintou logo à sua frente.
Era uma casa pequena
Rodeada de jardins,
Onde brotavam açucena
Margaridas e jasmins.
Um cheiro de natureza
Impregnava o ambiente.
Havia uma luz acesa,
Mas nenhum sinal de gente.
Quando à porta ele bateu,
Alguém perguntou: “Quem é?”
Pela voz era mulher
E o velho disse: “Sou eu!”
“Pode entrar que a casa é nossa!”
Tornou a voz, lá de dentro.
Jararaca, em tom de troça,
Respondeu: “Claro que entro!”
Abriu a porta num instante,
Penetrou na ante sala
E o que viu foi o bastante
Pra quase perder a fala.
Ficou parado e feliz
Diante do que ele via.
Quem é que lhe recebia?
A própria Leila Diniz.
Leila disse: ” Chega mais!”
E Jararaca chegou,
Envolto naquela paz
Que na casa ele encontrou.
Ela ficou tão contente
Quando viu o humorista,
Que anunciou prontamente:
“Pessoal, chegou o artista!”
Toda a gente já sabia
Do que tinha acontecido,
Que ele havia subido
Por volta do meio-dia.
De repente, um brilho intenso
Começou a se espalhar
E um leve cheiro de incenso
Confundiu-se com o ar.
Jararaca olhou pros lados
Só viu amigos sumidos,
Há muito desencarnados,
Porém, jamais esquecidos.
Toda a gente cintilava
Pela casa toda acesa
E até, pra sua surpresa,
Seu corpo também brilhava.
Estava o Ciro Monteiro
Ao lado do Gordurinha.
Ao fundo, Augusto Calheiros
Entoava uma modinha
No ouvido do Agostinho
(o grande amigo) dos Santos,
Aumentava o burburinho
De gente em todos os cantos.
Pintou também Noel Rosa,
Além da Carmen Miranda.
Descansando na varanda
Estava o Orestes Barbosa.
Ao entrar, Ary Barroso
Saudou custódio: “Meu mano!”
E pediu atencioso
Que lhe emprestasse o piano.
Então, Chiquinha Gonzaga
– Cheia de desprendimento –
Solicitou uma vaga
Nos agudos do instrumento.
Como a dupla dava pé
Ambos fizeram bonito,
Tocando um tango erudito
De Ernesto Nazareth.
Entrou pela madrugada
Aquela reunião,
Cada vez mais animada
Com muita luz e canção.
Zé da Zilda e Chico Alves
Só chegaram bem depois,
Entre bom- dias e salves
Acomodaram-se os dois.
Acenando com um lenço,
Num cumprimento discreto,
Estava o Torquato Netto
Que renovou o incenso.
Pintou Dalva de Oliveira,
Alda Garrido e Nonô.
E mais: Geraldo Pereira
Dolores, Índio e Sinhô;
Pixinguinha, Luiz Pixoto,
Ataulfo, Assis Valente,
Joubert, Maria, Garoto…
Meu Deus, como tinha gente.
Outros nomes consagrados
Foram levar seu abraço.
Porém, por falta de espaço,
Não são aqui mencionados.
Jararaca, satisfeito
Com aquela recepção,
Sentia dentro do peito
Uma tremenda emoção.
No entanto, estranhava
A ausência de Ratinho.
Por que ele não chegava?
Teria errado o caminho?
Foi aí que, de repente,
Falou Nestor de Holanda
E a entrada de uma banda
Anunciou gravemente.
Tinha um anjo na trombeta,
Outro anjo no trombone,
Um arcanjo na corneta
E outro no vibrafone;
Na flauta Antonio Callado,
Zé Dantas no tamborim,
Um querubim no teclado,
Na viola um benjamim;
Heitor no seu cavaquinho
Tocava divinamente
E ao seu lado, finalmente,
Na clarineta: Ratinho.
Jararaca deu um pulo
De entusiasmo incontido,
Até assustou Catulo
Que estava distraído.
Correu pro meio da banda
Para abraçar Severino,
Que tocava uma ciranda
Bem ao gosto nordestino.
Em meio a tanta alegria
Não seria anormal
Que um grito de carnaval
Se armasse naquele dia.
Num instante toda a gente
Se organizou em cordão.
Metais e cordas na frente,
Mais atrás a percussão.
E saíram pela estrada
Num entrudo original,
Sem fantasia sem nada,
Tudo muito ao natural.
Não quiseram mais cantar
Modinha, samba ou bolero,
E só deu: “Mamãe eu quero,
Mamãe eu quero mamar”.
Não parou naquele dia
A festa do Jararaca.
Há muito que não se via
No céu tamanha fuzarca.
Nem Bing Crosby resistiu
À força de tal festança,
No quinto dia subiu
E também entrou na dança.
Assim, passei pro papel,
Com dedicado carinho,
O encontro de Ratinho
E Jararaca no céu.