MPF questiona prefeito de Caxias sobre construção no Terreiro da Gomeia

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Em tempos de profunda intolerância religiosa, ameaças e perseguição principalmente nas casas de santo nas periferias e na Baixada Fluminense, um dos locais mais simbólicos da história do candomblé no Brasil, pode desaparecer. O prefeito de Duque de Caxias Washington Reis (MDB) anunciou a intenção de construir uma creche em imóvel no Terreiro da Gomeia, no bairro Jacatirão.

O Ministério Público Federal (MPF) solicitou ao prefeito de Duque de Caxias e às secretarias municipais de educação e cultura informações sobre a respeito. A notícia da construção foi dada pelo prefeito em rede social e contraria a proteção ao patrimônio histórico relacionado ao terreiro,  que se encontra inclusive em processo de tombamento. A solicitação faz parte do Inquérito Civil nº 1.30.017.000099/2019-94.

O procurador da República Julio José Araujo Junior, que assina o documento, considera “a necessidade de proteção ao patrimônio histórico e cultural, a qual independe de efetivo registro ou tombamento em órgão competente”. Além disso, destaca a importância da valorização e atuação proativa do Estado das religiões de matriz africana, sobretudo em razão da importância de Joãozinho da Gomeia não apenas para a região, como para todo o país.

O ofício determina o prazo de cinco dias para que a prefeitura de Duque de Caxias, a Secretaria Municipal de Educação e a Secretaria Municipal de Cultura se manifestem sobre a intenção da construção na área em processo de tombamento. O documento solicita ainda, em mesmo prazo, informações ao Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac) sobre o processo nº E-18/007/760/2019, que trata da proteção ao patrimônio histórico, bem como o cronograma de medidas para a sua conclusão.

O terreno pertencia a João Alves de Torres Filho, nascido em Inhambupe, interior da Bahia, em 1914 – mais tarde batizado Joãozinho da Goméia.

Homossexual assumido, o negro de personalidade forte fez sua despedida de Salvador em alto estilo, em 1948, quando apresentou ao público no Teatro Jandaia um espetáculo com danças típicas do candomblé – um escândalo para a época.

Já no Rio de Janeiro, instalado na Rua da Goméia – endereço incorporado ao nome -, recebia em seu terreiro políticos, embaixadores, artistas, aguçando a curiosidade da imprensa, que noticiava cada vez mais as excentricidades do pai de santo. Getúlio Vargas, JK e Ângela Maria, a Rainha do Rádio, eram frequentemente vistos por lá. Sua figura foi, inclusive, inspiração para o humorista Chico Anysio criar o personagem “Painho”, um marco na carreira do ator.

Foi em 3 de abril de 1971 que a revista “Manchete” noticiou: “Quando seu corpo chegou à sepultura, no cemitério de Caxias, Estado do Rio, um raio cortou o espaço, e desabou toda a água dos céus, ensopando as três mil pessoas que erguiam os braços e gritavam: Epa Hey, Iansã!”. A narração caprichada descrevia o enterro de João Alves Torres Filho, o pai de santo Joãozinho da Gomeia. Apelidado à época pela imprensa de “rei negro”, “o maior babalorixá do Brasil” e até “Papa do candomblé”, ele morreu em 19 de março daquele ano vítima de um tumor no cérebro e problemas cardíacos. O relato sobre a cerimônia fúnebre pode conter excessos, mas não inverdades.

Não é fantasia, é fato. Era uma tarde muito quente de verão e, quando desceram o caixão, o tempo fechou. Começou uma chuva intensa, com trovoadas. Uma manifestação de Iansã recebendo seu filho. O sepultamento grandioso condiz com a trajetória de Joãozinho da Gomeia.

O pai de santo fez história no candomblé ao colocar a religião em páginas de jornais e revistas. É impossível falar em candomblé do Brasil sem falar do Joãozinho, ele foi essencial para mostrar o candomblé não só como algo exótico, como um culto primitivo, mas sim como uma religião que tinha uma estrutura própria.

A história de Joãozinho da Gomeia foi enredo da Grande Rio no carnaval 2020, virou peça de teatro, documentário e também um livro. Os movimentos culturais de Duque de Caxias lutam para ser construído um espaço de memória do babalorixá e da história das religiões de matrizes africanas na Baixada Fluminense. Recentemente foram realizadas diversas escavações arqueológicas, onde encontrou-se diversas peças do local onde funcionou o terreiro.

Entenda o caso – Em resposta ao ofício expedido pelo MPF acerca do andamento do processo nº E-18/007/760/2019 (que trata do tombamento do imóvel no terreiro da Gomeia), o Inepac informou, no mês de fevereiro de 2020, que o processo está em fase de finalização da pesquisa histórica e que “será realizada a ficha de inventário com uma descrição arquitetônica do bem, podendo assim o processo ser encaminhado para a Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa, que encaminhará para a ciência do governador”. A publicação da prefeitura em rede social contraria os objetivos de proteção do patrimônio e será devidamente apurada, de modo a garantir a continuidade do processo.


Marroni Alves

Filho da escola pública e de pernambucanos. Nascido no Hospital Duque, mas sempre no Hospital Infantil. Formado em História na FEUDUC, dou aula em pré-vestibular comunitário na Vila Ideal, Jardim Gramacho, Complexo da Mangueirinha e Xerem.

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