MADAME SATÃ E EU
Me criei ouvindo histórias sobre Madame Satã. Os meninos da minha idade reproduziam, cheios de temor, causos contados pelos mais velhos, acerca de um homossexual que pontificou na Lapa, e foi o terror do pedaço – dava porrada até na polícia.
Eram tantas as histórias – muitas delas com um tênue limite entre a realidade e a fantasia – que passei a achar que esse tal de Madame Satã fosse uma entidade fantástica, fruto da crendice popular, tipo Saci Pererê, Caipora e tais.
Só em 1969, quando foi lançado o excelente Memórias do Café Nice, do também excelente Nestor de Hollanda, foi que as coisas se esclareceram pra mim. O livro retrata os subterrâneos da música brasileira e da vida boêmia carioca, entre o fim dos anos 30 e meados da década de 1950. E li com surpresa que Madame Satã não só existira, como convivera de perto com o autor, que lhe dedicou um capítulo inteiro.
Bem, agora eu já não tinha mais dúvida quanto a existência daquela figura lendária. Mas acreditar que ela ainda vivia, não, eu nem imaginava.
Não demorou muito, eu comprei a então mais nova edição do Pasquim, numa banca em Ipanema, e fiquei de queixo na tipoia. Uma chamada de capa anunciava longa entrevista, com ninguém menos que Madame Satã. Se foi com surpresa que constatei que a lenda era viva, literalmente, foi com espanto que reconheci na foto, um velho que eu já havia encontrado várias vezes entre a Lapa e a Cinelândia, e de quem sentei bem próximo, durante um espetáculo no antigo Teatro Mesbla.
Parece coisa do satã (o próprio). Não é que na noite seguinte, vejo o tal velho sentado à varanda do Amarelinho? Ele estava cercado por um pequeno grupo, entre o qual se achava o jornalista Antonio Chrisóstomo, de quem eu era amigo. Chrisóstomo me apresentou à peça e me convidou a sentar pra um chope.
Dali em diante, tornou-se comum esbarrar com Madame Satã pelo Centro do Rio. Ele sempre me cumprimentava de modo afável e, numa das vezes, me convidou a sentar à mesa do Amarelinho, com outro pequeno grupo de amigos.
Foi nessa noite, aliás, que mantivemos um diálogo, digamos, surreal. Em meio à conversa, alguém soltou a palavra “albatroz”, e Satã comentou:
– Ah, albatroz é a cadeia mais braba do mundo. Fica nos Estados Unidos.
Houve o que se pode chamar de “silêncio ensurdecedor”, e eu fiquei esperando que alguém esclarecesse aquele equívoco. Não sei se por medo ou por ignorância, o fato é que ninguém disse nada. Foi aí que eu – no impeto dos meus 23 anos de idade – resolvi contestar.
– Não, Satã. Albatroz é um pássaro.
– Pode até ser um pássaro – disse ele -, mas é também o nome daquela cadeia americana, de onde ninguém nunca fugiu.
Você que já teve 23 anos sabe como é essa gente, né? Não me dei por vencido.
– Ora, Satã, então você acha que iriam batizar uma prisão com nome de pássaro – o símbolo da liberdade?
Percebi que ele estava começando a perder a paciência, quando me perguntou:
– Menino, você quer saber de prisão mais do que eu?
Não, eu não queria. Sentindo que estava na hora de dar o papo por encerrado, me esforcei pra ser humilde e respondi:
– Claro que não. Mas eu acho que o nome da cadeia é Alcatraz.
E Satã, com a cara mais deslavada do mundo:
– Então. É o que eu estou dizendo, o tempo todo. O nome da prisão americana é Alcatraz.