INVENTANDO TERREIROS

Lembremos que os terreiros são as saídas táticas, a partir da prática do tempo/espaço por aqueles que rasuram as lógicas da desterritorialização e da aniquilação. Dessa forma, a experiência do desterro se dá via retirada compulsória e também pelas vias de descredibilização do ser e de seus saberes enquanto possibilidades. Para a maioria dos seres que não repousaram nas cadeiras dos privilégios arranjadas sobre os alpendres da Casa Grande, resta inventar terreiros como ato de desobediência, transgressão e continuidade.

(SIMAS e RUFINO, 2019, p.78)

 

A experiência de desterro é uma herança legada por parte da população migrante que passou a habitar o município de Duque de Caxias a partir de meados do século XX. Tem sido também uma experiência compartilhada há gerações por seus habitantes, forjada nessa “descredibilização do ser e de seus saberes enquanto possibilidades”, à qual referem-se Simas e Rufino. No enfrentamento a essas formas de desterro, recriar e ressignificar territórios tem sido uma prática que atravessa essas gerações.

Como Joãozinho da Gomeia, no final da década de 1940, uma leva de migrantes saiu de suas “terras” de origem trazendo em seus corpos saberes e práticas que plantaram nesse novo chão que passaram a habitar, onde a expansão da infraestrutura urbana (água, esgoto, eletricidade, calçamento, hospitais, escolas, equipamentos de cultura e lazer…) não crescia na mesma proporção que a população e era distribuída de forma desigual. Os desfavorecidos – majoritariamente “negros e pardos”, provenientes do nordeste – buscaram nesses saberes e práticas ferramentas para lidar com suas demandas cotidianas (BRAZ e ALMEIDA, 2019). Parteiras, rezadeiras, ervas medicinais, simpatias, capoeiras, quadrilhas, folias de reis, repentes, feiras livres, mutirões… foram alguns desses saberes e práticas enraizados naquele território. Nesse contexto, muitos terreiros, como a Gomeia, tornaram-se espaços de circulação desses saberes, promovendo o acolhimento a essa população.

No período em que comandou a Gomeia, João “associou-se à Sociedade Pró-Melhoramentos da Vila Leopoldina, contribuindo financeiramente para os investimentos de melhoria no bairro” (SOUZA, 2002, p.194) e manteve uma escola primária gratuita para trinta crianças. Seu terreiro foi utilizado como espaço para campanha de vacinação e Seu João era procurado para solucionar problemas diversos da vizinhança, dos financeiros aos de saúde física e emocional. Além de servir como opção de sociabilidade e fruição artística, não só para essa vizinhança, mas para moradores de outros bairros, em dias de festas. O artista, intelectual e ativista negro Abdias do Nascimento conheceu a Gomeia recém-instalada em Duque de Caxias, cidade onde morou na juventude (ALMADA, 2009, p.57). Em 1949, publicou no jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro – que fazia parte do conjunto de experiências desenvolvidas pelo Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado por Abdias em 1944 – uma reportagem ilustrada intitulada São João no Quilombo de Caxias, na qual esse sentido do Terreiro da Gomeia – como espaço religioso, mas também de sociabilidade, cultura e lazer para uma população predominantemente negra – é reforçado:

A pequena cidade do Estado do Rio, Caxias se transformara num grande, imenso quilombo. Seu povo é todo negro. Cada fundo de casa é um “terreiro”, em cada encruzilhada se topa com um despacho pra Exú. Não é sem motivo que já se chamam Caxias de Roma sem torres de igrejas… É um dos raros lugares onde o negro ainda pode usar o direito de praticar seu culto sem ser aborrecido pela polícia. Exceto a Bahia, em nenhuma outra cidade do Brasil se exerce com tanto fervor o culto dos “Orixás” que nossos antepassados trouxeram da África.

Era dia de São João em Caxias. Os terreiros embandeirados; o lugar dos atabaques ocupados pelos músicos, a sanfona em primeiro plano chorando os amores de Galati pela “Francana”, mais tarde, crismada de “Saudades do Matão”. Nos “Cartolinhas de Caxias”1 a festa transcorreu animadíssima. Houve o tradicional casamento na roça, foguetórios, o pó dourando a carapina da negrada, que nem ligava… Dansamos também no terreiro do famoso pai-de-santo Joãosinho da Goméa, que apesar de ser filho de Oxósse, é um fervoroso devoto de São João2.

A reportagem é ilustrada por uma foto de João vestido de “caipira”, com uma legenda que ressalta a ausência de elementos religiosos na imagem: “ABAIXO OS ‘ORIXÁS’ E VIVA SÃO JOÃO: JOÃOSINHO DA GOMEIA tirou as roupas de Iansã e foi o caipira mais sanjuanesco da festa.”3

Seu João no São João. Reportagem do jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, Rio de Janeiro, nº 4, p.12, 1949. Fonte: Acervo IPEAFRO.

Sandra Almada (2009) conta que foi nessa circulação de Abdias por terreiros de Caxias que este conheceu e tornou-se amigo de Joãozinho da Gomeia e também do poeta, pintor, ator, teatrólogo e ativista político Solano Trindade.

Bem próxima ao Terreiro da Gomeia, no bairro Itatiaia, a casa de Solano Trindade também expressava elementos desse “Quilombo” que Abdias via em Caxias. Essa casa no nº 166 da Rua Itacolomi4 – onde Solano viveu durante as décadas de 1940 e 19505 com sua primeira esposa Margarida6 e os quatro filhos do casal – foi também um espaço de sociabilidade entre produtores de diversas expressões artísticas e compartilhamento de saberes que o casal trouxe de Pernambuco. O jornalista e escritor Eldemar de Souza – que conheceu Solano no final da década de 1960 no município paulistano de Embu das Artes e artistas que conviveram com ele em Caxias – relata que nessa casa da Itatiaia: “entre outras atividades, discutiram-se a criação do célebre Teatro Popular Brasileiro7 e a fundação da Escola de Samba Unidos de Duque de Caxias, que estreou em 1949, com o enredo Maracatu de sua autoria” (SOUZA, 2008, p.25). A historiadora Maria do Carmo Gregório (2005) traz mais detalhes sobre essa movimentação artística na casa de Solano e Margarida:

Os ensaios do Teatro Popular Brasileiro eram realizados, no decorrer da semana, na rua da Constituição, na sede da ABI. No domingo, a festa acontecia na residência de Solano Trindade em Duque de Caxias, onde eram organizados eventos visando a angariar recursos para o financiamento dos espetáculos folclóricos.

Nos espetáculos folclóricos, eram apresentados: autos dramáticos, pantomimas, danças e cantos do “populário” brasileiro, como bumba meu boi, maracatu, Candomblé, pregões, tipos populares do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, frevo, caboclinhas, pastoril e outros. (GREGÓRIO, 2005, p.98).

Nessa casa da família Trindade, como no Terreiro da Gomeia, circulavam pessoas de diferentes classes sociais, como ressalta o escritor Guilherme Peres, a partir de um texto de Barboza Leite, artista de origem cearense, que mudou-se do Rio para Caxias por intermédio do amigo Solano (AMARO ALMEIDA, 2019, p.125):

[…] reunindo gente humilde “artesãos, serventes de obras, para ministrar-lhe aula de teatro, pintura ou folclore; aulas de vida que reuniam em sua casa embaixadores e operários, escritores e magistrados, pintores e poetas, sociólogos e políticos.” (PERES, 2008, p.23).

A partir de uma leitura do mundo que cruza sua condição de homem negro e pobre em uma perspectiva comunista, Solano foi um criador artístico engajado e em constante diálogo com os territórios para onde sua vida nômade o levou. Em Caxias se relacionou com jovens artistas e intelectuais que criaram em 1957 uma breve, mas frutífera experiência de produção de um jornal mensal chamado O Grupo. Sob a supervisão de Barboza Leite, o jornal recebeu, em uma de suas primeiras edições, o texto “Caxias: Bahia sem 365 igrejas”, em que Solano se despedia da cidade onde viveu durante os anos de sua mais intensa produção artística (PERES, 2008):

Caxias é para mim um amor…

É como menina-moça, mal vestida, de má fama, mas que agrada ao poeta, pelo lacinho azul que trás na cabeça…

É uma nova Bahia. Faltam-lhe as trezentos e sessenta e cinco igrejas. Mas o resto Caxias tem: um populário rico e maravilhoso…

Não tem biblioteca, não tem teatro, não tem uma organização cultural, porém, já se tornou uma cidade que atrai turistas e estudiosos pela beleza de seu folclore.

Nesta cidade sem luz e sem calçamento estiveram nomes internacionais como Barrault, Malsine, Sablon, Gianini e diversos estudiosos americanos, ingleses, franceses, russos, checos, poloneses, chineses, haitienses, cubanos e até brasileiros como o Antônio Maria, Aníbal Machado, Vanja Orico, Bruno Giorgi, Di Cavalcanti e outros.

Todos esses elementos cultos vieram a Caxias, para ver as suas folias de reis no ciclo natalino, os seus calangos no ciclo junino, os seus sambas no ciclo carnavalesco e as suas macumbas e Candomblés espalhados na cidade.

É a beleza do folclore caxiense que faz tôda essa gente enfrentar a lama, os buracos, a escuridão e até o perigo dos assaltos.

Marcel Gautherot enfrentando uma série de obstáculos, fotografou em colorido as folias de reis e vai expor em Paris o seu maravilhoso trabalho, e assim Caxias será apresentada à cidade Luz.

Edson Carneiro estudou, gravou e filmou diversas danças caxienses e sobre elas têm feito conferências pelo Brasil, o que muito valoriza a nossa cidade.

Na Europa se fala em Caxias, não pelos seus crimes, mas pelo seu populário que empolga pelo colorido e musicalidade. (O GRUPO, Duque de Caxias, Junho de 1957).

Solano segue no texto mencionando os trabalhos artísticos de Margarida Trindade, Barbosa Leite e dos jovens do jornal O Grupo, finalizando com uma cobrança à Prefeitura por investimentos no turismo local focados no folclore.

João, Solano e Abdias compartilharam o tempo – as décadas de 1940 e 1950, “os anos dourados da modernidade da cultura negra da diáspora”, segundo o pesquisador Spirito Santo 8 espaços – entre Caxias e o Rio de Janeiro – e aspirações criativas de “modernização” de saberes e fazeres de origem africana9. Nesse movimento, legaram para as gerações futuras uma intensa produção de expressões culturais negras em contexto urbano, como o teatro, a poesia, a dança, a arte religiosa e o carnaval, que reúne todas essas linguagens. Além desse legado, sinalizaram caminhos para um tipo de produção coletiva a partir de territórios alimentados por uma intensa circulação de seus agentes e dos fluxos culturais que mobilizam. Se entre os três, apenas Abdias chegou com seu corpo carnal ao século XXI, esses sinais que legaram estão cada vez mais visíveis, especialmente para aqueles que, como eles, “não repousaram nas cadeiras dos privilégios arranjadas sobre os alpendres da Casa Grande” e precisam “inventar terreiros” (SIMAS, 2019, p.78).

 

1 Há algumas pesquisas recentes que desenvolvem melhor as informações aqui apresentadas de forma sucinta. Para tal, consultar a coletânea de artigos sobre caraterísticas do território e da população caxiense organizada por TENREIRO (2016) e a pesquisa de AMARO ALMEIDA (2019) com a obra e a trajetória do artista e ativista cultural Barbosa Leite, que viveu no município entre as décadas de 1950 e 1990.

2 Jornal Quilombo: vida, problemas e aspirações do negro, Rio de Janeiro, nº 4, p.12, 1949. Fonte: Acervo digital do IPEAFRO. Disponível em:

https://issuu.com/institutopesquisaestudosafrobrasile/docs/jornal_quilombo_ano_i_n4. Consulta em 01/08/2020.

3 Idem.

4 Informação obtida no documentário O vento forte do levante dirigido por Rodrigo Dutra em 2011.

5 Segundo Gregório (2005), Solano morou em Caxias de 1943 a 1957, quando, já separado de Margarida, mudou-se para São Paulo.

6 Margarida Trindade teve um papel de destaque nos empreendimentos artísticos liderados por Solano. Tanto que após a mudança de Solano para São Paulo manteve, junto a seus filhos, o seu envolvimento com as artes. Também envolveu-se, através das artes, com o trabalho da Drª Nise da Silveira, como relata Gregório: “[Margarida]Fez curso de Terapia Ocupacional com a Drª. Nise da Silveira. Margarida Trindade começou, nos períodos de festividades, a ensinar danças do teatro aos pacientes do Centro Psiquiátrico Pedro II, junto com a Dra. Nise da Silveira e com o Dr. Sá Pires. Posteriormente, tornou-se parte do quadro de funcionários como Terapeuta Ocupacional até a sua aposentadoria.” (GREGÓRIO, 2005, p.100).

7 O Teatro Popular Brasileiro (TPB) foi criado em 1950, por Solano Trindade, sua esposa Margarida Trindade e pelo folclorista Edison Carneiro. Segundo o jornal Correio Paulistano de 02/07/1961: “Além de atividades estritamente teatrais oferecia exibições de sambas, danças dramáticas e capoeira”. O TPB contribuiu também para “a formação de jovens artistas, através de cursos de interpretação, dicção, dança etc.” Folha da Manhã (SP) 18/09/1958. (Hemeroteca CNFCP/IPHAN).

8 Em seu perfil no Facebook, disponível em:

https://www.Facebook.com/spiritosolto/posts/10206288977355736. Consulta em 05/08/2020.

9 Devo esse entendimento às conversas com o pesquisador Spirito Santo, onde compartilhou comigo um pouco do seu imenso conhecimento sobre o legado cultural da diáspora africana no Brasil. Conhecimento fundamental para minha ainda incipiente compreensão dessa “modernidade negra”. Para um aprofundamento nas pesquisas que tem desenvolvido, ver SANTO (2016).

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