Nota prévia

Parabéns, Lurdinha! Oito anos de resistência, denúncia e arte. Não é pros fracos.

Conheci a Lurdinha por acaso. Honestamente não consigo lembrar os detalhes. Acho que estava estudando pro concurso do outrora Éden do magistério, a rede pública de educação caxiense. O mais curioso nisso tudo é que, quando caí no site, fui parar num texto de Eldemar de Souza. Que vem a ser ninguém menos que meu pai.

Se você já estudou para um concurso concorrido como esse, vai acreditar em mim. Quando se estuda para essas provas, a gente entra em cada site, lê cada página… Com o passar do tempo, você não sabe mais onde leu o quê. Se pedir para dez concurseiros listarem cinco coisas que os assombram, em onze dos questionários aparecerá “onde é que tá mesmo aquela parada?”.

Ainda bem que existe o histórico do navegador. Mas aí vc apagou porque tinha tanta tralha que o cara tava lento. E se não foi esse o caso, a tal informação foi pro espaço porque você deleta tudo depois que passa na prova: nunca mais vou precisar disso!

Voltando, ter conhecido a Lurdinha assim, por acaso, é uma demonstração do sucesso do site. Parabéns!

Volta e meia dava uma olhada. Lia algumas coisas. E, como disse em uma postagem no Face, “há tempos queria publicar na Lurdinha, mas ficava na minha”. Não sei, exatamente, como o Heraldo HB chegou àquela postagem, só sei que autorizei que ele a reproduzisse na Lurdinha.

Pelo formalismo com o qual ele se dirigiu a mim, acho que ele não lembra(va) de mim ou não associava o nome à pessoa. Nos conhecemos algumas semanas antes do meu avô falecer, numa das festas que meu pai fazia na velha casa em Olavo Bilac. Isso faz dez anos esse ano. Acho que não vejo o HB desde então.

Mas vamos deixar disso. Não foi pra contar historinha que me chamaram. Já vou avisando, lá vem textão. Aliás, HB, desculpa aí, espero que quando você falou em “textinho”, você estivesse de brincadeira, modo de falar.

Pensei em fazer em mais de um texto, mas achei que ficaria muito fragmentado. Sei que hoje em dia a pedida é por 140 caracteres, se possível, num meme. Sei que o bagulho é doido, o ritmo é frenético e o processo é lento. Mas é por isso mesmo que algumas coisas têm que ser tratadas com a densidade e seriedade que o assunto demanda.

Vou falar sobre o que considero ser o assunto mais sério, o episódio mais dramático da história brasileira (desculpem historiadores se invadi seu espaço). O assunto é golpe. E como tudo que se fale sobre o golpe é pouco, porque a doutrina de choque que se aplica consiste em agressões rápidas, simultâneas por todos os lados, se prepara, lá vem textão.

 

DE XERÉM AO BRASIL E DO BRASIL A XERÉM

Até a estátua do Zumbi no Calçadão sabe que foi golpe. (A propósito, especialmente Zumbi dos Palmares não teria dúvida.) Essa discussão já está vencida, apenas dois segmentos da sociedade brasileira não se curvam à verdade dos fatos. Um grupo é uma esquerda que se pretende extrema, mas que parece que deu a volta ou caiu do barranco. O outro é dos golpistas. Estes não aceitam porque não querem assumir que o problema nunca foi corrupção e sim luta de classes; que foram manipulados, os manifestoches (palmas para a Tuiuti); ou ambos.

Mas é preciso não deixar que a obviedade do golpe nos distraia, nos impeça de buscar entendê-lo. Minha contribuição para o entendimento do fenômeno será focada nas relações de poder e sua representação no espaço e as múltiplas escalas do golpe. A materialização dessa discussão conceitual – que muitas vezes fica abstrata demais – se dará por meio de exemplos ocorridos em Duque de Caxias.

Para isso, é necessário fazer um duplo exercício de escala. O primeiro é entender como, na escala pequena, local/municipal, foram se somando forças para levar à escala grande, nacional, um projeto de mudança de regime. O segundo é o contrário, como esse projeto foi se desdobrando em políticas municipais para viabilizar na escala pequena, a do dia-a-dia, o maior saque à classe trabalhadora que este país já viu.

 

De Xerém ao Brasil

Por que começar a explicar o golpe de baixo para cima se a porrada está vindo de cima para baixo? Porque o poder é algo que vem de baixo. Ninguém tem poder. O que existe são pessoas investidas de poder, pessoas que receberam o poder de um determinado grupo. Quem “tem” poder só o tem enquanto algum grupo lhe investe de poder.

Quem duvida disso, pense na aula máster-class que o presidente Lula deu em São Bernardo entre os dias 5 e 7 de abril. Individualmente, Lula nada poderia fazer. Ficasse ele em seu apartamento, não há dúvida, ele teria sido preso às 17h01 do dia 6 de abril. O que o maior gênio político brasileiro fez foi voltar às bases, porque é de lá que vem seu poder.

Antes do Planalto, havia o Partido dos Trabalhadores e, antes desse, o Sindicato do Metalúrgicos de São Bernardo. No apartamento, ele seria o cidadão Luís Inácio da Silva. No Sindicato, ele era o Lula, a maior liderança viva do Brasil. O poder dele em dizer que não iria se apresentar vinha dos milhares de pessoas que lá estavam dispostas a não deixar a polícia pegar o presidente.

Então, o golpe começa nas bases. Peguemos o exemplo do golpista-queima-largada Washington Reis. A sua ascensão política está ligada ao crescimento do fundamentalismo cristão, que tem em algumas congregações neopentecostais sua ponta de lança.

A teologia da prosperidade – propagada na televisão diariamente por RR Soares, Malafaia, Edir Macedo, Valdemiro Santiago, entre outros empresários da fé – mistura sem cerimônia valores neoliberais com valores cristãos. Isso resulta em uma aliança por cima entre os representantes do capital e os fundamentalistas cristãos. Esta é uma das ligas do suprassumo da reação na política nacional: a bancada BBBB (Banco, Boi, Bíblia e Bala). Nesse acordo, o fiel é enganado e contribui para a perpetuação da sua própria condição social desfavorável (para dizer o mínimo).

O comportamento do deputado Aureo (SD) e do então deputado Washington Reis (MDB) ilustram bem isso. Ambos são evangélicos e têm suas bases eleitorais em Duque de Caxias. Apesar de viver em um dos municípios mais ricos do estado (3º) e do país (22º), a população caxiense não vê esse recurso se converter em benefícios e leva uma vida muito difícil. E com o voto em políticos como Aureo e Reis, a tendência é que essa população tenha sua qualidade de vida ainda mais deteriorada devido aos votos deles no Parlamento. Embora os eleitores desses dois políticos sejam principalmente a população pobre e trabalhadora de Duque de Caxias, ambos foram favoráveis ao golpe e à Emenda Constitucional do Fim do Mundo, que congelou os gastos com educação e saúde públicas para destinar mais recursos aos bancos.

Que valor divino defendiam os deputados quando votaram pelo golpe contra o governo que mais fez pela população pobre e trabalhadora? E pelo congelamento dos gastos destinados ao oferecimento de educação e saúde (dois direitos elementares)? Quando votaram contra os interesses de seus eleitores, eles o fizeram para cumprir sua parte no acordo com os bancos e grandes empresas.

Mas, como eles se reelegem perpetuamente traindo os eleitores? Se reelegem porque lá na base, há pastores pedindo voto. Porque, há dezenas de rádios, comunitárias ou não, fazendo proselitismo religioso e político-religioso pedindo votos para esses políticos. Pouco importa se o artigo 19 da Constituição Federal e a Lei 9.612/98 sejam claras em proibir a utilização da concessão da frequência radiofônica (um bem público) para esse fim.

A importância do fundamentalismo religioso no golpe não pode ser desprezada. Pelo contrário, é preciso denunciá-la porque o fundamentalismo possui enorme capilaridade e capacidade de mobilização. Nos pleitos presidenciais de 2010 e 2014, Marina Silva, uma candidata criacionista, foi a terceira colocada. O golpe foi conduzido na Câmara por Eduardo Cunha, um criacionista. A Operação Lava-Jato tem Deltan Dallagnol, um criacionista, entre suas estrelas. Há muito mais que coincidência nesses fatos.

Desta forma, a mistura de uma agenda reacionária nos costumes e neoliberal na economia é feita diariamente por esses empresários da fé com vistas a fortalecer as bancadas que vão ao Congresso votar contra o trabalhador. A maior prova disso é que a bancada evangélica votou em peso pelo golpe, dando início ao maior saque da história do Brasil. A partir dessas bases, políticos como Washington Reis e Aureo chegam à Brasília para de lá dar um golpe que terá reflexos em todo o Brasil, reverberando até Xerém.

 

Do Brasil a Xerém

Como em um golpe de praça, a batida de carteira da nação precisou de um elemento de distração. O principal foi a corrupção. Mas a agenda obscurantista teve um enorme peso. Os empresários da fé contribuíram para que parte da população ficasse parada enquanto um golpe acontecia. Enquanto o golpe passava, alguns pastores diziam que era necessário tirar o PT para que a moralidade fosse restabelecida. O golpe dizia respeito diretamente aos fiéis, uma vez que seriam seriamente afetados pela agenda neoliberal, afinal, muitos são beneficiários dos programas sociais, quase todos dependentes dos serviços públicos e vulneráveis no mercado de trabalho.

O golpe tem tarefas em várias áreas, entre elas, acabar com os serviços públicos garantidos na Constituição de 1988. Disso se encarregou a Emenda Constitucional do Fim do Mundo – que congelou por vinte anos as despesas com educação, saúde e segurança públicas. Em nível municipal, isso vem sendo feito em três frentes.

Uma frente é a econômica: o sucateamento dos serviços públicos, seja pela precarização das condições de trabalho, seja por salários atrasados. Outra é jurídica: o desmonte do plano de carreira da educação e o aumento da contribuição previdenciária dos servidores. Por fim, a frente política: retirada das licenças sindicais dos servidores, notadamente dos da educação.

Nesse contexto, merece destaque a atuação dos trabalhadores da educação de Duque de Caxias como bastião da democracia. Por um lado, o aprofundamento das contrarreformas neoliberais depende da dimensão pedagógica. Por outro, o SEPE Duque de Caxias é a principal organização de trabalhadores e trabalhadoras com atuação no município.

Como o estabelecimento da hegemonia passa pelo controle da educação em geral e da educação pública especialmente, o currículo e a escola pública possuem enorme centralidade. Afinal, é nas escolas públicas que as classes dominantes transmitem seus valores para poder se manter no poder. Daí o interesse em projetos como o Escola Sem Partido, defendido pela base do prefeito na Câmara de vereadores.

Por fim, na luta entre o capital e o trabalho, a organização dos trabalhadores em sindicatos é a principal arma contra a opressão da classe dominante. O projeto da contrarrevolução neoliberal é um projeto contra o povo trabalhador. Por isso é tão importante que os golpistas ataquem os sindicatos, só assim o golpe poderá fincar raízes profundas na sociedade.

No município, o ataque à organização dos trabalhadores está centrado na luta do poder público, seja prefeitura ou Câmara, contra o SEPE. Isso vem se dando de duas formas. Uma é a asfixia das contas, através da suspensão do repasse voluntário dos associados. Outra é a cassação das licenças sindicais dos diretores eleitos, comprometendo seriamente a capacidade organizativa e de mobilização da categoria.

A implementação do golpe na escala municipal dependeu de que a porteira fosse aberta em Brasília. Por outro lado, a implementação das contrarreformas neoliberais no município prepara terreno para uma nova rodada de retrocessos e prejuízos aos trabalhadores.

Mais do que nunca precisamos ir às bases. Mostrar à população caxiense que ela foi e vem sendo enganada. Denunciar que os políticos eleitos em nome do fundamentalismo estão também a serviço de um regime que explora o cidadão, o fiel. Denunciar que em nome da moral, dos bons costumes e de Deus se operou o maior golpe da história brasileira. E a hora é agora, afinal, já está em gestação levar mais um fundamentalista e golpista de Xerém à Brasília para aprofundar a contrarrevolução neoliberal e, com isso, o saque aos direitos dos trabalhadores brasileiros.

 

* Mateus Mendes de Souza é bacharel em Geografia e professor da Rede Municipal de Duque de Caxias.

 

* * *

Fica a dica:

Muita coisa boa tem sido produzida sobre o golpe de 2016. Poderia fazer uma extensa lista, mas irei me limitar a sugerir aquilo que eu usei para poder escrever esse “textinho” (foi mal HB, saiu textão).

==>>> Katarina Peixoto: Criacionistas e jusnaturalistas: sobre os despachantes do golpe e como enfrentá-los. Tem na rede, mas faz parte de um livro muito bom: A resistência ao golpe de 2016. Projeto Editorial Praxis, 2016. Disponível em https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/katarina-peixoto-nao-subestimem-papel-da-justica-e-dos-criacionistas-no-golpe.html

==>>> Adriano de Freixo (Organizador): 2016, o ano do Golpe. Oficina Raquel, 2016.

==>>> Sobre o crescimento da bancada da Bíblia, sugiro uma matéria de Glauco Faria: Quando Deus pauta a política. Revista Fórum, 2012. Disponível online em https://www.revistaforum.com.br/quando-deus-pauta-a-politica/ 

Pode um pouco de autopromoção?

Em dois artigos publicados no site do deputado federal Wadih Damous e republicados aqui na Lurdinha, já vinha discutindo os desdobramentos do golpe em Duque de Caxias. Antes de dar o caminho, quero registrar aqui que as fotos dos dois artigos são creditadas a Filipo Tardim, colega, companheiro de luta e leitor assíduo da Lurdinha. Juro que já pedi para editarem, mas dívida continua. Os artigos em questão são: Duque de Caxias: a dimensão municipal de um golpe de Estado e Professores de Duque de Caxias pagam a conta do golpe das elites. Disponíveis em

http://lurdinha.org/site/duque-de-caxias-a-dimensao-municipal-de-um-golpe-de-estado/

http://lurdinha.org/site/professores-de-duque-de-caxias-pagam-a-conta-do-golpe-das-elites/

ou no face https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1128786793924804&id=100003804815898

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1145118502291633&id=100003804815898

Finalmente, um texto produzido conjuntamente com meu colega de rede, grande amigo e companheiro de lutas, Benito Yárritu: Lutar é pedagógico (disponível apenas no Facebook).

https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1205675402902609&id=100003804815898


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.