1962: O Ano do Saque – links entre Duque de Caxias e Brasil

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O filme 1962: o ano do saque, de Rodrigo Dutra e de Victor Ferreira, faz parte de uma cena cultural que ocorre atualmente na Baixada Fluminense e também do movimento cinematográfico que emergiu nas periferias do Rio de Janeiro a partir da última década. Esse filme traz elementos bastante característicos dessa cena como a relação com o território de origem, mas vai além ao estabelecer links espaço-temporais que transcendem o próprio local e conectam Duque de Caxias com a história do Brasil. Uma história recente pré-golpe de 1964 que vem sendo revisitada e resgatada a fim de que compreendamos por que estamos onde estamos. Já nos perguntamos que país é esse, mas o filme lança a questão: que Duque de Caxias é essa? Qual é a relação dessa cidade e da Baixada Fluminense com a história de nosso país?

Não menos importante é a forma como o filme foi esteticamente construído. Embora seja um documentário e se baseie em fatos reais, é uma obra artística. A questão da representação é muita cara ao cinema de periferia e, atualmente, há uma disputa pela invenção de um imaginário sobre os territórios populares e sobre a exclusão. A intenção é produzir outros discursos em que o excluído deixe de ser o subalterno ou o exótico. Há aí uma nítida mudança de postura de objeto a agente do discurso. A possibilidade de se produzir outros discursos sobre o imaginário da miséria e da exclusão não é um fato isolado, já que faz parte de um momento histórico pujante do Brasil e da região metropolitana do Rio de Janeiro.

Mas nem sempre o que assistimos são novos discursos. Muitas vezes para falar do território de origem se recorre a inúmeros discursos previamente prontos sobre a exclusão social. Desse modo, embora a produção parta da periferia, essa pode ser marcada por um discurso pré-estabelecido sobre pobreza e territórios como forma de encontrar ressonância na sociedade. Às vezes, o que se observa é a obrigatoriedade de que se corresponda a um certo “ideal de pobreza”, portanto, ao invés de um discurso transformador muitas vezes termina-se reproduzindo o discurso hegemônico. O tema da representação/ auto-representação é bastante complexo e possui inúmeras contradições, não pretendemos esgotá-lo neste texto, nosso objetivo é apenas sinalizar que o filme de Dutra e Ferreira aponta caminhos muito interessantes para o movimento, pois possui uma forte relação com seu território de origem, aborda os temas espinhosos da violência e da exclusão social, mas consegue escapar de “certas armadilhas” que envolvem essa questão da representação na arte, além de ser técnica e artisticamente muito bem construído. Há uma tecitura imagética e relações com a história do Brasil e com a cinematografia brasileira; é possível ver ali uma assinatura de diretor e não apenas uma mera captação de imagens. O filme anterior de Dutra, O vento forte do levante – Solano Trindade (2011), também é muito interessante, resgata um personagem importante da cidade de Duque de Caxias, mas 1962: o ano do saque vai além, pois é técnica e artísticamente melhor, o que mostra o amadurecimento do diretor.

O filme inicia com sombras de pessoas projetadas numa parede, onde se percebe que seguram foices e porretes. Em seguida, vemos imagens das manifestações de junho do ano passado que ocorreram em Duque de Caxias. O intenso quebra-quebra mostra o levante popular, o clima de caos e revolta é logo linkado a Caxias de 51 anos antes. O clima de instabilidade no país que culminaria dois anos depois com o golpe de 1964, a crise política e a falta de alimentos básicos como feijão e arroz levaram a um dos maiores saques populares que atingiu principalmente a cidade de Duque de Caxias. Vemos, então, depoimentos de historiadores da região e de pessoas que participaram dos saques ou que tinham alguma lembrança do episódio. Um dos personagens mais importantes é Getúlio Gonçalves, da Associação Comercial de Duque de Caxias, que participou da repressão aos saques. Houve mortes de ambos os lados. Percebemos que o medo da elite de que houvesse a destruição da ordem vigente, clima que imperava não apenas em Caxias, mas também no Brasil naquele momento pré-64, fomentou uma das práticas mais terríveis da Baixada Fluminense que é a ação dos grupos de extermínio, os quais se fortaleceram ainda mais no pós-golpe.

Importante salientar o quão interessante e enriquecedor para o filme é o diálogo entre os depoimentos dos personagens e os trechos de filmes brasileiros, jornais e músicas do ano de 1962.

Esses links vão construindo as relações entre Duque de Caxias e o Brasil e também do próprio filme com a cinematografia brasileira. Outro aspecto interessante, é o fato de que os personagens do filme são entrevistados em cima de um palco, na posição de atores e iluminados como tais, o filme parece não querer escapar de ser uma ficcionalização do real. Um filme é sempre um recorte e uma invenção ainda que seja um documentário.

Uma das sequências mais emblemáticas do filme é quando mostra a fachada da Associação Comercial de Duque Caxias e sobre ela é projetada um trecho do filme o Pagador de Promessas, de Ancelmo Duarte, feito também no ano de 1962. Na cena, o personagem Zé do Burro deitado na cruz tal qual Jesus Cristo é levado pela multidão, que tenta forçar a entrada na igreja. Essa cena vem logo após o depoimento de Getúlio Gonçalves sobre a “turma do esculacho”, encarregada da repressão ao saque. Na projeção da cena sobre a fachada, o personagem Zé do Burro crucificado fica exatamente sobre o letreiro na parte em que está escrito “Duque de Caxias”, o que dá a sensação de que é a cidade que está sendo crucificada. A multidão, então, força a entrada na igreja. As portas se abrem e dão a sensação de que o que está sendo derrubado é a fachada da Associação Comercial de Duque de Caxias. Em seguida, vem o depoimento de Maria Concebida, que participou dos saques: “Aonde tivesse uma porta fechada que fosse de comércio, quebravam. E carregavam.”. Metaforicamente é uma bela sequência!

Finalmente, o filme termina com as mesmas manifestações de junho do ano de 2013, mas desta vez vemos a multidão reunida na Praça do Pacificador em Caxias fazendo reivindicações através de cartazes, cada um expõe a sua demanda, o seu desejo. Isso certamente não corresponde a ordem cronológica dos fatos já que as manifestações se iniciaram pacificamente e a violência veio depois. Contudo, a inversão da ordem no filme é proposital, pois deixa um gatilho de esperança, a possibilidade de diálogo e mostra uma população desejosa de mudanças.

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