BAR DO MIRANDA

Bebida não é remédio, mas também não é exatamente o contrário — dizia Miranda, enquanto preparava mais um Tridu para um cliente adoentado.
Dizem que gripe se cura com descanso, vitamina C e bastante líquido. Mas essa é a versão dos médicos. Os bebedores, mais vividos e menos acadêmicos, juram que é no balcão que se encontra a verdadeira profilaxia popular.
Não é coincidência — nem poesia — que a palavra botequim venha de “botequinhas”, as pequenas bóticas coloniais onde se vendia de tudo: ferramentas, fumo, tecidos, quinquilharias… e remédios. Pois bem, lembro sempre do antigo Bar do Miranda, onde os frascos vinham com espuma e o tratamento era via oral, gelado e com efeito quase imediato.
O bar ficava quase numa esquina, em frente à praça da Vila São Luiz (a que não é a Apoteose). Abria cedo, fechava tarde e, entre esses dois extremos, se prestava ao ofício sagrado de manter de pé os que a vida tentou derrubar. A clientela variava conforme o vírus da vez: virose, sinusite, dengue ou saudade. Cada um chegava com seu mal e buscava ali o alívio que a ciência ainda hesita em reconhecer.
Miranda, o dono, não era barman nem farmacêutico, mas ouvia como médico de família e prescrevia como benzedeira. Para dor de garganta, a receita era cachaça com mel e limão — mas não valia limão-taiti, tinha que ser aquele da casca mais fina, o limão-cravo, que ele mesmo guardava num saco plástico atrás da geladeira. Para gripe forte, prescrevia conhaque com própolis, gengibre ralado e duas gotinhas de bitter. “Mais que isso vira tortura”, ele dizia. Já teve quem garantisse que dengue passava com catuaba quente — tese polêmica, mas levada a sério nos meses de março só para garantir.
Para as dores que o exame de sangue não revela, Miranda também tinha solução. Para o sujeito traído, servia o “Perdigueiro” — mistura ousada de uísque, vermute e cajuína, que cegava o ciúme e distraía o orgulho. Para o recém-desempregado, o clássico “Desemprego Tônica”, feito de cachaça amarela, Coca-Cola e gelo de café: dava força para voltar pra casa sem parecer derrotado. Já quem chegava em silêncio, com o olhar de quem perdeu um parente, uma aposta ou a vontade de continuar, ganhava o “Remédio de Cristão” — que era só uma cerveja bem gelada e um lugar no canto, com o ventilador girando devagar.
O Bar do Miranda não anunciava cardápio nem receitas. A sabedoria era passada de boca em boca, entre um trago e outro. Era escuro, sem música ambiente, com cheiro de desinfetante barato e esperança morna. Mas quem se sentava ali sabia que a melhora vinha — não necessariamente pela bebida, mas pelo rito. Era o balcão, a pausa, o silêncio, a escuta.
Via-se, às vezes, um cliente encostado na parede, suando entre febre e ressaca. Miranda não perguntava muito. Vinha com um copo e dizia: “Toma isso aqui, senta no canto e espera passar.” E passava. Em meia hora, o sujeito já estava rindo, reclamando do time ou jurando que ia largar tudo e mudar pro interior.
Hoje, o Bar do Miranda não existe mais. Fechou discretamente, como quem se despede sem drama. O letreiro desbotou, a porta virou parede, e só ficou na memória de quem foi curado ali — ainda que sem atestado.
No fim das contas, era isso o Bar do Miranda, uma farmácia da vida desregulada. E quem bebia ali, mesmo sem febre ou infecção, saía com a imunidade mais alta — nem que fosse só pela fé cega na mistura, no ritual e na companhia.