Final de junho de 2020 e ao que tudo indica o haitiano profeta que veio do futuro tinha razão: bolsonaro acabou. O cerco do STF, a continuidade do andamento dos vários inquéritos contra os filhos, o fracasso total na gestão da máquina pública, o derretimento de boa parte de seu apoio popular, o fator Queiróz e sua ligação com as milícias do Rio, a atitude criminosa em relação à pandemia, são muitos os fatores que vão antecipar a saída do sujeito do Planalto, por mais blefes de macheza que ele e seus pares ainda esbravejem por aí. A questão agora é de tempo e de se achar o meio, ou o acordo, para a desocupação dessa nefasta figura da presidência.

Mas veja bem: bolsonaro acabou, porém duas coisas não acabarão com ele e é preciso se atentar para elas. Uma coisa que não vai acabar junto com o bolsonaro é o bolsonarismo (aliás, precisamos depois arrumar um outro nome para essa doença), espólio incômodo que teremos que carregar por um bom tempo ainda, testemunhando essa fatia alucinada do país pelas ruas, babando ódio, explanando seus preconceitos, pedindo intervenção militar e saudando a bandeira estadunidense. Esse horror.

Sim, é uma chaga que vivia invisível no corpo do país e que aflorou com estridência perigosamente de 2014 pra cá. Na verdade, bolsonaro, uma figura completamente bizarra e sem luz, significou a encarnação desse mal que já existia. Conseguiu personificar, colar sua imagem a um público que já andava bolado em seus domínios, com suas piadinhas racistas e homofóbicas no churrasco de domingo e no grupo de zape da família. O bolsonarismo é anterior ao bolsonaro e essa verdade cruel é um tapa na cara, um dedo na ferida que vai levar muito tempo pra depurar.

Mas há uma outra coisa que não vai acabar com o bolsonaro e é aí que o bicho pega também e precisamos olhar em perspectiva. Ajuda a entender a questão incômoda sobre como o cara chegou à presidência e porque diabos ele ainda não caiu, apesar da coleção cada vez mais nítida de motivos cabeludos para isso.

Bom, vamos lá, com algumas licenças simplificadoras. Grosso modo, o golpe de 2016 tinha por objetivo trazer a caneta presidencial de volta às mãos da turma do PSDB para que eles terminassem o que começaram por aqui nos governos do outrora príncipe dos sociólogos. Basicamente: vender a Petrobras (agora vitaminada pelo pré-sal), entregar a aposentadoria dos pobres ao mercado financeiro e acabar com qualquer possibilidade mínima de soberania nacional. E, obviamente, acabar com direitos sociais, sepultando de vez as conquistas mínimas da Constituição de 1988.

O problema é o que o mundo vai mudando né, e o PSDB vinha se tornando cada vez mais apenas um bando de velho broxa e playboys mimados. Não conseguiram constituir nomes nacionais de fato populares em seus quadros, apesar dos esforços na criação de uma “direita transante”, sonho da meia dúzia de liberais do país em ter uma juventude liberal que tenha força no voto. Quando esse esforço foi capturado pela extrema direita, principalmente a partir das redes sociais, o projeto do golpe se viu num dilema brabo… E é aí que entra bolsonaro. Uma eleição com Lula no páreo, o risco de derrota estava desenhado com nitidez, os caras sabiam. E não fizeram tudo o que fizeram para depois entregar de bandeja, via eleição, o poder de volta a um governo de viés popular de esquerda. Daí foi o que vimos: tapa-se o nariz e vamos de seu jair mesmo, o tiozão do pavê, o reaça nervoso, aquele taxista comédia que ninguém levava fé, xucro, tapado, mas que tinha voto. Depois a gente controla ele, pensaram. Abriram os portões do inferno na certeza de que era única saída possível para a continuidade do projeto. Não tenha dúvida: esse concerto foi feito para que seu jair ficasse até cumprir sua função: passar o rodo neoliberal sem pena, terra-arrasada.

Afinal de contas, para a elite econômica do país não importa uma figura lamentável como bolsonaro (na verdade pra várias figuras racistas da classe média alta é até bom um cara explanadão assim). Porque o interesse, o apoio entusiástico, a injeção de dindin, o endosso feliz é no projeto neoliberal representado pelo governo. Não importa bolsonaro – importa o paulo guedes. Importa que o governo acabe com a previdência social; importa queimar a Amazônia e “passar a boiada”; importa voltarmos a ser capacho internacional, exportador de matéria-prima e só.

Vale lembrar do vampirão obsessor, por exemplo. O funesto michel temer possivelmente foi o presidente com o menor índice de apoio no mundo inteiro neste século e mesmo assim levou seu mandato até o final. Mesmo com o lema Fora Temer sendo ecoado em centenas de cidades do Brasil e do mundo, berrada em estádios, cantada em shows, pixada em muros por todo o país, sendo trending topics mundiais repetidas vezes. Levou o mandato até o final mesmo com escândalos de corrupção em um grau inacreditável, incluindo áudios, filmagens, malas de dinheiro rastreadas por chips. Mesmo com menos de 10% de apoio, foi poupado pela grande mídia, pela Justiça, pela Fiesp, por grande parte da classe média, porque começou a enfiar a Ponte para o Futuro goela abaixo do país, sem a necessidade do escrutínio popular. A começar pela inacreditável Lei do Teto, lançada nas primeiras horas de seu governo, que congelou por vinte anos, CONGELOU POR VINTE ANOS, os gastos sociais com Saúde e Educação. E uma reforma trabalhista selvagem que aumentou ainda mais a informalidade e foi trazendo de volta o fantasma triste da fome para o cotidiano do país.

Assim como bolsonaro, temer não caiu porque executou sem dó o receituário do mercado financeiro que banca a elite política do país. Não se engane: bolsonaro é um dos produtos do golpe de 2016. Para os agentes do golpe, ele foi a Ponte para o Futuro possível.

O mercado reagiu bem…”, nos diz os telejornais; e agora o mercado estará “agitado”, enquanto não se sabe o que virá, se é Mourão, se é cassação da chapa e eleição nova, se vão construir um novo salvador da pátria, mas é fato que vão tentar mudar a aparência desde que o paulo guedes da vez continue mantendo o plano de massacre aos pobres e saque dos cofres públicos para a banca.

bolsonaro acabou, bicho, mas o bolsonarismo e a Ponte para o Futuro, não. O estrago dessa página infeliz de nossa história vai ainda repercutir por décadas, com risco de ser quase irrecuperável.

Quis o destino que a pandemia do novo coronavírus nos expusesse essa verdade irrefutável: a barbárie neoliberal é um projeto ao mesmo tempo assassino e suicida. E teremos que botar isso na pauta de qualquer caminho que queiramos trilhar para sair dessa encalacrada. Precisamos repensar na vida humana como valor fundamental. Precisamos de uma mudança de rumos a começar pela revogação imediata da Lei do Teto e pela constituição de um novo pacto pela proteção social, sob pena de vivermos mais algumas décadas de selvageria e desesperança, sentimentos de que quem viveu os anos neoliberais do Brasil lembram bem.

Que mais profetas haitianos nos ajudem.

[ heraldo hb – pitacolândia – junho 2020 ]
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heraldo hb

. Animador cultural, escritor e produtor audiovisual nascido no século XX. .

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