Santos Lemos – Um Santo que Fumou, Bebeu e Escreveu
Na verdade, de santo não tinha nada, felizmente; era tão torto e reto como qualquer um de nós. Diferia, entretanto, da maioria dos pobres mortais por seu invulgar talento e sensibilidade social. Mas não pensem que era um homem de esquerda, não era; muito menos de direita, Deus nos livre. Era, de fato, um exemplo encarnado da alma brasileira: inteligente, sincero, romântico e esporrento. Sabia entender as coisas simples e – em alguns casos – dramáticas do povo, transportando-as, com um colorido todo especial, para os seus escritos, fossem eles crônicas ou livros. Se me fosse permitida uma comparação, diria que ele me lembra o João do Rio.
Era ousado no que escrevia, desafiador, quase provocador. Em muitos momentos, acredito, escandalizou a pequena burguesia provinciana da Caxias de antigamente. Em sua literatura se escancaravam as portas de uma galeria que exibia tipos que a sociedade evita dar voz: prostitutas, bicheiros, malandros e marginais de todos os tipos.
Conheci Santos Lemos em 1967, no Curso de Formação de Professores para o Ensino Normal – mais tarde transformado em Curso de Pedagogia – mantido pelo Instituto de Educação Governador Roberto Silveira. Naquele momento não consegui entender muito bem a razão de sua presença num curso de Pedagogia. Afinal, Santos Lemos era policial e mais velho que a maioria dos alunos daquele estabelecimento. Pode parecer uma posição preconceituosa de minha parte, mas naquele momento ela se justificava. A presença de um “tira” num curso para a formação de professores, convenhamos, era algo um pouco estranho. Vivíamos um momento politicamente difícil. O país estava sob uma feroz ditadura que acabara de derrubar o governo constitucional de João Goulart. Através da truculência policialesca e de Atos Institucionais não menos truculentos, os novos donos do poder procuravam intimidar aqueles que lhes faziam oposição. Um bem montado serviço de “deduragem” fora criado no país, visando garantir a continuidade do golpe de 1964. Tudo favorecia ao aparecimento de arrivistas dos mais variados matizes. Em todos os lugares, informantes, “oficiais” e “não-oficiais”, se esmeravam na apresentação de “serviço”. As paredes tinham ouvidos; o clima era pesado, todos desconfiavam de todos.
Diante de tudo isso, nada mais natural que eu colocasse as minhas barbas de molho diante da presença de Santos Lemos no Curso de Pedagogia. Mas com o tempo nossas relações de amizade foram se estreitando. Pude então perceber que todas as minhas desconfianças eram a típica reação daquele personagem criado pelo Henfil: “Ubaldo, o paranóico”.
Aquele homem de baixa estatura, gordinho, pele amorenada, cabelos crespos e “tatibitate” era, na verdade, um sonhador dotado de incomum talento literário. Acabei ficando seu amigo, ajudando a desfazer, junto aos demais colegas, aquela imagem negativa que fora criada em torno de si.
Santos Lemos, apesar de seus dramas pessoais, manteve serenidade suficiente para construir uma obra literária rica em informações, curiosa e de denuncia das mazelas sociais. Sua posição em nossas letras é impar. Através dos livros que publicou, com os próprios recursos, desfilam tipos humanos que povoam as páginas policiais. São anti-heróis (tornados heróis na poesia “Santo Verdade”, de Newton Menezes) de carne e osso, com registro de batismo e – algumas vezes – endereço conhecido.
Até chegar aos seus romances-reportagens, Santos Lemos trilhou o áspero caminho da crônica policial. Durante mais de 15 anos foi correspondente de pelo menos oito jornais do antigo Distrito Federal aqui, em Duque de Caxias. Isso teria sido a sua verdadeira escola. Foi a experiência como repórter de polícia que o levou, quase que naturalmente, para o campo da literatura. Das páginas de seus livros, saltam tipos humanos, fatos e aspectos que caracterizam um período dramático vivido em nossa cidade. Período que muitos gostariam que fosse varrido para baixo do tapete, mas que a pena desafiadora do escritor teima em imortalizar, revelando, em cada parágrafo, a face cruel de uma sociedade martirizada pelas desigualdades sociais.
O escritor não foi um mero diletante, frio cronista afastado dos fatos; ao contrário, o sub-mundo de Duque de Caxias foi visto e vivido por Santos Lemos, que dele não saiu incólume. Se a reportagem policial havia revelado o escritor, produziria, também, o próprio policial. Parece ter sido esta a grande contradição de sua vida: como conciliar a liberdade de expressão, tão necessária a realização do seu ofício de escritor e jornalista, com a função policial, normalmente autoritária e repressora?
Santos Lemos jamais abdicou de suas prerrogativas de jornalista. Tanto assim que sua passagem pela polícia foi marcada por diversas punições, decorrentes de inconfidências, denúncias e críticas feitas contra a cúpula da Secretaria de Segurança. Aos poucos, como se vê, o escritor foi “matando” o policial, que acabou tendo a sua carreira arruinada.
Foi um predestinado. Sua existência, desde cedo, seria marcada pela tragédia. Por fim, faltou-lhe força e vontade para vencer os dramas pessoais e a insidiosa doença que o acometeu.
O desaparecimento de Santos Lemos deixou uma lacuna em nossas letras. Com sua morte calariam, também, as vozes daqueles que lotaram a carceragem do 311, a sinistra delegacia da Plínio Casado.
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Rogério Torres