Serenata de Amor
“Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora.”
(Euclides da Cunha)
Na última casa daquela humilde e nada pacata vila ao lado do Colégio estadual Zila Junger de Oliveira, moravam Evilásio Junior e sua esposa Lucinha. A bem da verdade a palavra casa não era a denominação correta que se podia dar para aquele pequeno quarto com banheiro onde pagavam apenas uma quantia simbólica. O jogo da vida era duro demais com eles, pois a grana que Evilásio ganhava catando latinha e papelão pela Avenida Nilo Peçanha e adjacências, mal dava para se alimentar de maneira básica. Mas Por intermédio de seu senhorio, Tião Barracuda, Evilásio acabara de arrumar uma colocação como ajudante num ferro-velho que ficava no bairro Periquitos onde o proprietário respondia pela alcunha de Bexiga.
Era sexta-feira, Geraldo chegou em casa feliz, recebera seu primeiro salário após uma semana de trabalho duro. No trajeto de volta veio refletindo sobre todas as dificuldades que enfrentara até ali, e decidiu que com o abençoado dinheirinho que ganhara de maneira formal, daria um presente à sua amada Lucinha. Ao adentrar em seu quartinho, deu as boas novas à sua esposa e propôs que ela escolhe-se algo que ela deseja-se muito. Lucinha meio tímida (seu sonho era ter um televisor) sorriu, mas disse que gostaria de um Serenata de Amor. Geraldo, meio sem graça, mas ainda feliz, não fazia a mínima idéia do que fosse aquilo. Porém, sem nada dizer para não estragar a surpresa, prometeu a si mesmo que já na manhã seguinte sairia em campo procurando o tal Serenata de Amor. Voltou-se para Lucinha deu um leve beijo em sua testa e disse que ia dormir cedo, pois além de cansado do trabalho, logo acordaria para assim fazer sua amada ter o seu desejo satisfeito.
Como em todo começo de mês a loja Americanas estava um inferno e parecia uma extensão do calçadão da cidade. Era o primeiro dia de Toninho no emprego, ele estava radiante e decidiu que trataria a todos de maneira cortês e educada, agradecendo assim, não se sabe a quem, pela benção de estar empregado numa grande empresa. Seu primeiro contato foi com um homem humilde que adentrou a loja com um jeito assustado e com olhar perdido diante daquele mar de produtos sem focar em nada e resolveu ajudar.
-Bom dia senhor, procura algo específico?
-Bom, na verdade eu gostaria mesmo é de uma informação…
-Pois veio ao lugar certo, em que posso servi-lo?
Geraldo olhou para os lados como que para verificar se estava sendo observado e perguntou falando baixinho:
-Sei que talvez essa não seja sua função, mas você pode me dizer o que significa serenata de amor?
-Caraca! Que bacana! Serenata de amor é uma coisa muito bonita.
-Pois é… Minha mulher gostaria de ganhar isso.
Toninho explicou tudo a Evilásio com riqueza de detalhes, ele ouvia atentamente, volta e meia seus lábios expressavam um sorriso que combinava com a alegria de seu semblante maravilhado.
Saiu de lá leve e agradecido, surpreendeu-se também com Lucinha, afinal de contas, com tantos problemas individuais e financeiros, via nisso um gesto singelo de sua esposa, e também um aceno de paz e prelúdio de dias melhores. Viu uma aura de romantismo envolvendo a figura de Lucinha, e sentiu-se feliz como a muito não se sentia.
Já na rua, a idéia ainda o fazia viajar, quando a alguns metros à frente, na Nilo Peçanha esquina com Etelvina Chaves, viu no Bar do Zé Luis, algumas pessoas bebendo alegremente como se nada mais importasse, alguns empunhavam instrumentos de cordas e estavam tão alheios a todo movimento que era rotineiro no local, que aquilo lhe chamou a atenção. Resolveu ter com eles. Tratava-se do Grupo Novo Canto, que acompanhados dos poetas Vicente Portela e Eduardo Ribeiro, receberam Evilásio, que foi logo pedindo uma cerveja prontamente servida pelo garçom Firmino. Geraldo contou um pouco de sua vida e dos acontecimentos que o levaram até ali e perguntou se poderiam ajudá-lo. Todos acenaram afirmativamente e Beto Cavaco tocou um samba pra comemorar.
Um senhor grisalho com uma enorme bolsa atravessou a rua em direção ao Bar, houve euforia em sua chegada e ao saber de toda a história Bradou:
– Serenata de Amor que se preze rola de noite! Beberemos até anoitecer e depois seguiremos pra lá, e você Geraldo vai beber com a gente!
Então o velho abriu a bolsa e de lá tirou um bongô e começou a tocar. Era Marcos Bonfim ou Marquinhos Maluco como todos ali o chamavam.
Evilásio estava feliz da vida com seus novos amigos, e as comemorações seguiram durante todo o dia. Lá pelas tantas, após várias caixas de cerveja, iscas de fígado, lingüiças calabresas aceboladas, alguém se lembrou da Serenata. Pagaram a conta e foi sugerido que devido a distancia seria melhor que fossem a pé. E os trovadores seguiram pela Avenida Nilo Peçanha, recitavam poemas, rememoravam antigos sambas-canções e não faltou nem as palavras de ordem que eram proclamadas a todo o momento, e tudo isso tendo como testemunha uma lua em gancho prateada. Parecia folia de reis.
Chegando ao local e sentindo o “clima da avenida” onde Evilásio morava, Vicente Portela e Eduardo Ribeiro entreolharam-se e passaram a comentar sobre um famoso livro de Aluísio de Azevedo, o cenário era parecido. Os músicos posicionaram-se ante a janela de Evilásio. Segui-se um silêncio e logo as cordas começaram a pontear uma bela melodia. “… Te vi me olhando da Janela, parecia uma tela, pintada em meu coração, Faço em minha mente uma prece, vê se não desaparece e não vá desbotar, Peço ainda, em plena segunda feira, uma cachaça mineira e o tempo a me guiar…”
Lucinha abriu a janela subitamente, tinha os olhos vermelhos e o rosto inchado de quem chorara a tarde inteira.
-Evilásio seu vagabundo! Você mal ganhou seu primeiro salário e sai de casa pela manhã dizendo que ia trazer o bombom que eu te pedi e volta bêbado com um bando de cachaceiros fazendo baderna! Já é quase meia noite!
Evilásio tentou retrucar, mas sem que houvesse tempo para tanto, uma bacia de alumínio contendo água suja foi arremessada nele e nos artistas, que muito constrangidos (porém acostumados à cena) foram retirando-se em silêncio e se despedindo de Evilásio com frases do tipo: “-Seja forte rapaz!” Algum poeta mais elitizado, digo etilizado, disparou a rima: “-Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!”. Partiram. Então Evilásio se viu sozinho.
Ao perceber o alvoroço, uma porta se abriu. Era Tião Barracuda, (mas não estava em mangas de camisa não) trajava apenas uma sandália de couro modelo franciscano e bermuda, exibindo uma enorme pança cabeluda. Além do sangue que trazia no olhar, empunhava um revólver calibre 38 especial e gritou ferozmente:
-Que putaria é essa que está acontecendo aqui? Esta merda é um conjunto residencial de respeito porra! Não vou admitir atitudes de baixo nível e nem a presença desses vagabundos perturbando nosso sossego!
-Eu posso explicar seu Tião. –Disse Evilásio
Lucinha não parava de chorar. Tião observando isso a abraçou trazendo o corpo da frágil mulher junto ao dele e apontando a arma para Evilásio disse:
-Essa foi a gota d’água, a menina não merece passar por isso, seu pilantra! Posso até acolhê-la em minha casa. –Disse, abraçando-a mais forte. –Enquanto a você, suma daqui agora! –Evilásio tentou argumentar:
-Lucinha…
-Suma da minha vida Evilásio…
–E fechou a porta.
Evilásio olhou para Tião Barracuda, abaixou a cabeça, subjugado e deixou o local. Pela primeira vez em sua vida, apesar de tudo que já passara, as coisas perderam o sentido.
Subiu o morro do recreativo caxiense e saiu no terminal rodoviário da Kenedy em frente à antiga casa de seu conterrâneo, Tenório Cavalcante. Lá Evilásio teve a noite mais longa de sua vida, ao seu lado, apenas um vira-lata como fiel companhia madrugada adentro. Muitas coisas passaram pela sua cabeça como se fossem frames, porém ele não conseguia concentrar-se em nada, mas quando amanheceu ele já tinha um objetivo.
O segundo dia de trabalho de Toninho na Lojas Americanas de Duque de Caxias seria inesquecível. Na entrada cumprimentou as meninas que vendiam televisores, elas estavam tranquilamente vendo o telejornal matutino como faziam sempre. Toninho foi até a gerência, apresentou-se e bateu seu cartão, mas como ainda era cedo, percebeu que dava tempo para retornar ao calçadão de onde viera, para tomar café em uma padaria próxima.
Mal seus pés pisaram fora da loja, caiu, esvaindo-se em sangue após receber uma pancada seca e forte na parte de trás da cabeça. Não conseguia enxergar nada, estava tudo vermelho, porém não sentia dor. Nesse momento veio à sua mente a imagem de algumas mudas que havia plantado no jardim de sua casa, e pensava em tom de conforto sobre aquelas que sobreviveram ao clima seco do inverno que estava indo embora, e que agora com a chegada de uma nova estação ficarão lindas quando receberem as primeiras gotas de chuva. Ele conseguia ouvir o grito histérico das meninas da seção de televisores, e mais ao fundo ainda identificou uma voz que já havia ouvido antes, mas que não conseguia lembrar aonde…
-Seu filho da puta! Isso é pra você não sacanear mais ninguém! Seu arrombado!
-Era Evilásio.
Numa loja de retalhos que ficava em frente, uma enorme caixa de som tocava a música Forever Young de Rod Stewart.
Ricardo Villa Verde
Muito bom o conto! Um dia tomo vergonha na cara e publico algo tambem!
muito bom Villa, gostei muito mesmo há um desesperantismo novelesco, eu quase juraria que aconteceu mesmo, pelo que acomanho de seu estilo…
merece ser ‘rodado’ inclusive,forte abraço irmão!
Muito bom…. \o/ E valeu pela participação especial…. 🙂