A Grande Rio Venceu. E não foi apenas o desfile das escolas de Samba – a escola venceu o racismo e a intolerância religiosa que teima em crescer em nosso país. Exú Venceu. Desde fevereiro quando fui para o Rio e me apaixonei perdidamente em uma encruza (onde a flor nasceu raiz!) da Lapa por esse enredo da Grande Rio, venho pensando e elaborando esse texto.
Dois dias antes da apuração publiquei fração do texto no Instagram – aqui segue o texto na íntegra com pequenas alterações (feitas após o desfile)
“Fala, Caxias!” Exú no centro do enredo da Grande Rio e a encruzilhada como ponto de chegada
Luiz Antonio Simas já havia apontado para algo que quando pensado escancara uma fato surpreendente, diga-se: por que tantas escolas já falaram, citaram e trouxeram Exú de tantas formas na avenida, mas nenhuma Escola de samba fez um enredo exclusivamente sobre o mais humano dos orixás? O desfile da Grande Rio desse ano pôs finalmente um ponto final nesse questionamento com “Fala, Majeté! As Sete Chaves de Exú”.
A Escola de samba de Caxias, previamente a pandemia, em 2020, fez um belíssimo desfile, coroado com o vice-campeonato, “Tata Londirá – O Canto do Caboclo no Quilombo de Caxias”, e o duo Gabriel Haddad e Leonardo Bora (com a pesquisa do historiador Vinicius Natal) tem um dedo e uma mão inteira nessa difícil tarefa de contar uma história mais poética do que “narrativa” ou cronológica de Joãozinho da Gomeia. É difícil descrever com poucas palavras (ou até com palavras) as ideias sempre “prenhas de significados-significantes” que os carnavalescos trazem para a Sapucaí (desde os tempos da Acadêmicos da Cubango): catárticas, poéticas, energéticas, potentes, sublimes – são alguns adjetivos que podemos usar para descrever o que se viu e que se vê sempre na avenida. As referências deles no campo das palavras vão de Drummond a Guimarães Rosa, de Manoel de Barros a Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo (que desfilou com a Escola em 2020), mas as grandes referências para o carnaval vem das ruas. E é com essa energia que se decidiu o enredo de 2021/22, em um bar, celebrando o vice-campeonato e justamente em uma encruzilhada.
“Fala, Majeté!”. Assim falava a catadora de lixo, Estamira Gomes da Silva, quando se comunicava com Exú em um telefone quebrado. O documentário “Estamira”, de 2004, dirigido por Marcos Prado, mostra sua trajetória no lixão de Gramacho, sua filosofia de vida e sua comunicação particular com o orixá. O documentário e outros registros de Estamira foram uma verdadeira aula para Natal, Haddad e Bora. Por isso eles a definem como sendo uma “intelectual, uma pensadora e produtora de conhecimento” e não simplesmente como uma mulher negra periférica que trabalhava em um lixão. Estamira definia o lixo como “força transformadora”, assim como Exú (que também é a boca que tudo come tal qual um lixão como vimos na Sapucaí na Alegoria Enugbarijó e na interpretação incrível de Damerson D’Alvaro) – essa é a conexão que fez a Grande Rio: de uma transformação que vem também do lixo, e mais do que uma transformação, uma sublimação. Estamira queria sublimar seu corpo, transcender – sair do mundo material que ela sentia que a aprisionava: “por isso que ainda estou aqui visível, no formato homem”… , dizia ela. E assim pedia para Exú essa “transformação sublimada” que ela já sentia que carregava energicamente em sua filosofia e forma de pensar e ver o mundo. A força poética, espiritual e transformadora dos mantos e objetos Arthur Bispo do Rosário, que passou anos em instituições psiquiátricas, também é trazida pelos enredistas (que também trouxeram Bispo do Rosário na Cubango em 2018). E não é sobre falar sobre a suposta “loucura” destes dois – como muitos teimam em incutir na discussão, mas sim de sua força artística e intelectual. E para Exú esta seria uma discussão banal e mundana digna de uma boa risada e trago de marafo – ou como provavelmente diria Estamira, “eu não sou louca, eu sou sã ao contrário”.
Talvez essa seja a razão que muitos terem as vésperas do desfile classificado os ensaios e o enredo da Grande Rio como “pesados”. No fundo – e isso tem se mostrado cada vez mais verdade – tais percepções escamoteiam uma intolerância religiosa arraigada no pensamento brancocentrado e colonialista. E tudo isso pode muitas vezes ser resumido no medo que Exú inspira em especial quando associado a entidades como o diabo. Mãe Menininha de Oxum no documentário “Exú Rei” sobre Abdias do Nascimento resume a questão: “nós não conhecemos tal entidade, o diabo, aqui no Ilê”, e ainda, “o medo de Exú na verdade é racismo, é medo da África”. Isso tudo pelo insensato sincretismo entre o diabo e Exú que muitos tentam justificar a todo custo. O que parecem esquecer é que o diabo é uma construção colonial eurocentrada e branca e nada tem a ver com a cultura dos orixás que vieram da África ao longo dos tristes capítulos da diáspora negra atlântica.
Nesse sentido, o enredo da Grande Rio é um Rio Grande atlântico para Exú, pois nos reconecta com a entidade centro-africana que nada têm a ver com o anjo caído da mitologia judaico-cristã (para não falar que em Cuba, o sincretismo de Exú é muitas vezes feito com Jesus criança).
“Exú Caveira, Sete-Saias, Catacumba, Seu Capa-Preta, Tiriri”, todos estes exús e bombogiras brincaram conosco quando a Grande Rio passou na Sapucaí junto com Pedra Preta, Jubiabá, Seu Sete da Lira, Zé Pelintras, Caboclos, Juremas, Estamiras, Bispos do Rosário e todos aqueles que a “história não conta”. E foi sem meia sombra de dúvida em desfile exusíaco como todo bom de
manicômios e ruas – e da Sapucaí que a Grande Rio atravessou – que encontremos um lugar que a boca de Exú irá deglutir para nos mostrar uma nova possibilidade de civilização (ou seria “barbárie ao contrario”). E também da loucura, da penúria e das dificuldades que atravessamos nesse momento do país possamos nos sublimar em pensamento e ação como fizeram as “Estamiras desse chão” no desfile da escola de Caxias – esse é o poder de Exú. Laroyê.


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