No próximo dia 12, faz 14 anos que a freira Dorothy Stang foi assassinada em Anapu (PA), por jagunços a serviço de grileiros da região. Em datas muito próximas, outras duas mulheres tiveram mortes violentas – uma no Rio e outra, em São Gonçalo. Na ocasião, eu editava o tabloide PORTA-VOZ, na Baixada Fluminense, e publiquei o texto abaixo, denunciando o assassinato das três vítimas e a impunidade com que contaram seus assassinos, até a consumação dos crimes. Como nada mudou em todos esses anos, resolvi postá-lo novamente, a fim de, mais uma vez, provocar a reflexão sobre o tema.

CENAS DE ASSASSINATOS NUM PAÍS QUE REJEITAMOS

Cena 1: Três tiros silenciam mais uma voz, que se levantava a favor da Terra e de sua utilização com responsabilidade social. Desta vez, a vítima é a missionária católica Dorothy Stang, assassinada na madrugada de 12 de fevereiro, em Anapu, no Estado do Pará. Norte-americana naturalizada brasileira, a religiosa – que pertencia à irmandade francesa Notre Dame de Namur – tinha 73 anos, 30 dos quais vividos no Brasil, mais precisamente naquele município paraense, onde dirigia um projeto ecológico, reconhecido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Cena 2: Um tiro na cabeça tira a vida da doméstica Sandra Correia de Abreu, na noite de 10 de fevereiro, em sua própria residência, à Rua Expedicionário Ívio Domênico Naliato, no bairro Jóquei, em São Gonçalo – município da região metropolitana do Rio de Janeiro. Assassinada pelo seu companheiro, Fredson Alves Martins, de 21 anos, Sandra tinha 26, era paulista, viveu com o criminoso durante nove meses e tinha três filhos de relacionamentos anteriores.

Cena 3: Karen Bianco Nascimento da Silva, 23 anos, morre com um tiro de pistola na nuca, no último dia 13 de janeiro, também em sua residência, no bairro Santa Teresa, Rio de Janeiro. Karen é assassinada pelo ex-marido, Alexandre Glauco Nellis, 30 anos, de quem estava separada há algum tempo. O casal tinha uma filha de três anos, que se achava no colo do criminoso no momento em que cometeu o homicídio.

Se perguntássemos o que têm em comum essas três cenas, alguém mais açodado apontaria o fato de as vítimas serem mulheres, mortas por armas de fogo. Quem sabe, um observador mais atento ressaltasse os laços afetivos, em que se embaraçaram vítimas e criminosos dos dois últimos casos. Os afeitos à numerologia, até veriam algo significativo na soma das respectivas datas em que se registraram as cenas 1 e 2, cujo resultado é 12.

Mas o traço que mais identifica tais histórias entre si é o fato de as três se passarem no Brasil, este país estranho, onde se destroem as florestas, envenenam-se o ar e a água e mata-se por nada, ignorando-se que coisa alguma justifica tanto atentado contra a vida. Além disso, por sua própria nacionalidade, os três crimes foram previamente anunciados pelos criminosos, denunciados pelas então futuras vítimas e negligenciados pelas autoridades, que tinham a obrigação de impedir que eles se realizassem.

O noticiário não omitiu que Dorothy Stang sofria ameaças de morte, por conta do seu trabalho em defesa dos sem-terra da região e da preservação da Floresta Amazônica. Em reportagem televisiva, chegaram a mostrar a própria religiosa falando sobre isso, numa entrevista concedida há mais de um ano. Dirigente do Projeto de Desenvolvimento Sustentado Esperança, Dorothy se opunha frontalmente aos interesses de grileiros e madeireiros que empestam aquela área. Em dado trecho da reportagem, aparece o delegado local deixando claro que sabia do perigo que ela corria, mas, pelo que se viu, nada fez contra os ameaçadores.

Poucas horas antes de morrer, Sandra Correia de Abreu recorreu à polícia para registrar queixa das agressões que sofrera, por parte do marido. E o fez em duas delegacias: na de Atendimento à Mulher e na 75ª, em Rio do Ouro. Segundo a imprensa, Fredson chegou a ser conduzido por PMs à 75ª, de onde foi liberado após os policiais lavrarem o registro de lesão corporal. De forma idêntica, a polícia não ignorava as intenções de Alexandre Nellis, com relação à Karen Bianco Nascimento da Silva. Também de acordo com a imprensa, a jovem, entre os meses de julho e dezembro do ano passado, chegou a registrar oito queixas contra o ex-marido, que a agredia sistematicamente.

Perguntas e denúncias que ficam no ar

Casos como esses, somam-se a inúmeros outros que nos levam a, mais uma vez, formular uma pergunta que não cala (nem obtém resposta!), desde os obscuros anos da ditadura militar: que país é este? Como se não bastasse a impunidade, que permite criminosos notórios permanecerem soltos, ainda temos que conviver com a falta de ação preventiva da polícia, mesmo quando a vítima em potencial se antecipa à consumação do fato, denunciando-o. E o pior: não raro, a polícia conta com o amparo legal para negligenciar à vontade. Senão, vejamos. O que levou o pessoal da 75ª DP a liberar o assassino de Sandra, após tê-lo enquadrado pela prática de lesão corporal, antes do homicídio? A Lei 9.009/95, que não prevê prisão para esse tipo de crime. Algo semelhante deve ter permitido que Alexandre não fosse preso, em nenhuma das oito vezes em que Karen denunciou-o por agressões sucessivas.

As histórias de Sandra e Karen não se revestiram da repercussão que se deu à morte de Dorothy, é claro. Afinal, o assassinato da religiosa tem conotação política. Isto, sem descartar o fato de que, mesmo naturalizada brasileira, ela tinha sangue norte-americano, o que por si só tem muito peso. Por isso, Lula determinou que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, entregasse o caso à Polícia Federal. Além disso, o crime mobilizou desde o presidente do Incra, Rolf Hackbart, e os ouvidores Pedro Montenegro (Direitos Humanos) e Gercino José da Silva (Agrário Nacional), até os ministros Marina Silva (Meio Ambiente) e Nilmário Miranda, da Secretaria Especial de Direitos Humanos, que afirmou ser uma “questão de honra” desvendar este homicídio.

Dorothy, infelizmente, não é a primeira nem será a última vítima do encarniçado conflito agrário deste país. Principalmente, em se tratando da região Norte, onde há 17 anos morreu o ecologista e líder sindical Chico Mendes, em Xapuri, no Acre. Para se ter uma ideia do que ocorre por ali, ao tempo em que se investiga a morte da missionária, continuou-se matando trabalhadores rurais no Pará, como aconteceu no último dia 15, quando assassinaram os sindicalistas Soares da Costa Filho, em Paraopebas, e Cláudio Branco, no próprio município de Anapu.

Agora, o que mais nivela Dorothy, Sandra e Karen – além da morte violenta que tiveram – é o fato de terem sido vítimas não apenas de criminosos sanguinários, mas, principalmente, da estrutura que rege o Estado brasileiro. O delegado de Anapu, disse que não deu proteção à missionária, “porque ela não pediu”. Alegação semelhante foi a do delegado da 75ª DP, José de Albuquerque Junior. Para ele, Sandra bem que podia ter sido encaminhada ao Centro Especial de Orientação à Mulher, onde estaria a salvo, mas “não manifestou esse desejo”. E aí, perguntamos: será que ela sabia da existência do Centro? Teria o delegado falado sobre isto com ela? Se tivesse falado, será que ela não manifestaria tal desejo?

São perguntas que ficam no ar, como no ar ficaram as denúncias dos 37 camponeses ameaçados de morte no Pará, em 2004, dos quais muitos já morreram, sem que a opinião pública nacional tomasse conhecimento. Mudar essa estrutura de Estado, pelo menos por enquanto, é uma tarefa árdua. Leis arcaicas, com o único fito de travar o exercício dos direitos do cidadão, não serão abolidas tão cedo – pelo menos, a julgar pela maioria dos nossos congressistas, mais preocupada com um salário de R$ 21 mil por mês e 90 dias de férias por ano. Precisamos, sim, rejeitar este país. Não indo embora para outros locais presumivelmente melhores. Mas, rejeitá-lo em suas mazelas, em sua estrutura de poder, irremediavelmente apodrecida. Precisamos, portanto, criar um novo Brasil, a partir de algo muito simples: o próprio texto da Constituição Federal, o qual nos garante que o poder “emana do povo”. Que tal levarmos esse texto ao pé da letra?

PORTA-VOZ – segunda quinzena de fevereiro/2005.


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