Eu comecei meu rolê na Praça do Skate de Nova Iguaçu, em 1996. Queria estar no meio daquela cultura chamada de “alternativa”, mas havia bem poucas garotas, que raramente tinham papéis importantes dentro dessa história. Eu insisti, encarei os desafios e aqui estou vinte anos depois. Só bem mais tarde entendi que eu era uma feminista, o que possibilitou a auto construção do meu ser nesse espaço. Mas o feminismo é uma prática que traz consequências. Eu também as encarei por toda minha trajetória. Implicações que me trouxeram o aprendizado, o conhecimento, a transformação de mim mesma, das minhas ações no mundo.

Por isso decidi escrever esse depoimento, que é um compartilhamento de uma das experiências mais duras que tive na vida, promovidas pelo machismo e também pelo feminismo que estão aí no nosso cotidiano. Também decidi escrever para dar um ponto final nesse triste capítulo da minha passagem. Mas, principalmente, porque é uma questão ética e um compromisso com minha própria trajetória.

Nesse processo de promoção da prática feminista no meio da produção cultural o espaço qual me encontrava – a cena cultural da Baixada Fluminense – me proporcionou a experimentação de uma metodologia de produção de cultura antissexista onde os homens estariam em contato direto com nossas construções. Eu acreditava que o contato deles com empreendimentos feministas iriam, no mínimo, informa-los sobre o novo mundo onde o machismo não será mais tolerado, já que nos espaços tradicionais de socialização (família, escola, rua) afirma-se o contrário. Um desses homens próximos foi meu ex-companheiro. As reflexões entre nós construíram maravilhosas histórias, até que as consequências do feminismo se revelaram, ou seja, seus privilégios foram contestados até o ponto de afetar seu conforto de ser homem em nossa sociedade.

Foram dois momentos de choque com esta consequência. Primeiro quando ele elaborou um novo projeto de vida para ele próprio. Na tentativa de que eu mudasse meu estilo de vida para acompanha-lo em seus novos hábitos o discurso “feministo” deu lugar a manutenção dos seus privilégios, lançando mão da chantagem emocional, do assédio psicológico e da manipulação dos meus sentimentos. Comecei a ser tratada como uma coisa, uma coisa particular. Para acompanha-lo em novos hábitos por algum tempo abri mão de visitas a minha família, receber amigos em casa, férias, finais de semana, amigos, sair á noite… Os novos ambientes de sua convivência me incomodavam demais, com piadas, pessoas e práticas homofóbicas e machistas.

O segundo momento teria haver com a ótima fase de crescimento profissional e pessoal qual atravessava. Minhas conquistas e alegrias acabavam quando eu chegava em casa. Quando entrei na faculdade recebi uma mensagem privada que me arrasou, e eu nunca celebrei essa conquista. Minha liderança não era aceita em certas ocasiões. Eu passei a receber mensagens perturbadoras pelas redes sociais e pelo telefone que acabavam com meu dia. Meu computador foi quebrado em punição a eu ter dito alguma coisa que ele não gostou. Um dia descobri que ele havia dado um livro meu – feminista – de presente a uma garota, seguido de um convite para sair . Por muito tempo ele continuou postando declarações de amor. No inicio achava que era remorso, depois comecei a achar muito estranho o que ele insistia em fazer.

Quando me dei conta daquela situação passei a reagir: não abrir mão dos meus compromissos, bloqueá-lo nas redes sociais, fazer novos amigos e sair á noite. Passei a não se preocupar mais com “cuidar” da relação, nem da nossa casa – pois sempre foi uma responsa minha o nosso bem estar. Ele fazia o jantar, mas isso era sempre cobrado como um grande feito, de forma insistente. Voltar dos meus compromissos era tenso, pois suas atitudes eram imprevisíveis. Mas a partir desta minha atitude a coisa piorou. Quando um cara te subjuga e ofende em um jogo de assédio até o ponto que você perde o controle sobre si mesma, e bota o dedo na sua cara, você tem duas escolhas: aceita ou reage. Escolhi a segunda opção que nos levou a violência física.

Dei inicio aquele processo de separação, singular em cada um. Demorei, por dificuldades materiais, mas também por que, para mim, não foi instantâneo descartar uma relação íntima e solidificada. Demoradamente planejei minha saída, ainda submetida a hostilidade, a agressividade, a xingamentos, a injurias e calunias, tudo em reação a minha atitude, de uma mulher que estava desamando para reorganizar sua vida. Nesse sofrimento todo emagreci treze quilos e passei as piores noites da minha vida. Somente as pessoas que conviviam comigo percebiam que algo acontecia, pois eu definhava. Eu não sabia o que dizer, era um misto de vergonha por estar passando aquilo, mas também de certeza de que eu vivia um relacionamento abusivo. O machismo é para todas, ser feminista não te torna imune.

Com tudo planejado para sair de casa em poucos dias, numa sexta-feira ele chegou furioso em casa, quebrou coisas e disse que me odiava. Eu perguntei o que eu havia feito para ele ter ódio de mim e ele não soube responder. Lembrei que nesses casos, onde não se pode dominar o amor vira ódio. Tive um medo diferente que o habitual, peguei o telefone e tentei pedir ajuda. Quando ele o quebrou pedi ajuda as vizinhas, que já estavam para fora de casa prontas a me ajudar, não as esquecerei. Minha família me buscou, o que me causa muita tristeza, pois jamais achei que os poria nessa situação. Nunca me senti tão humilhada. Passados mais de setenta dias eu sinto o ar entrar e sair do meu corpo como nunca senti. Minhas atitudes e comportamentos, felicidades e decepções pertencem a mim mesma.

Fora da relação consegui perceber a dimensão daquilo que eu estava vivendo. E era bem maior do que eu podia enxergar. O tempo, a intensidade, o absurdo daquele abuso surpreenderam-me ainda mais. Essa manipulação emocional, a pratica da “tática dois”, envolver pessoas emocionalmente e seduzi-las para causas próprias. Também tive espaço e tempo para enxergar que o discurso inicial de homem feminista se mantinha, mas havia ganhado força na sua imagem e seus projetos. Eu já havia alertado que ele não poderia se envolver em questões sobre direitos da mulher, pois ele próprio praticava o machismo e a violência de gênero. Mas para minha própria sanidade eu aguardei estar segura o suficiente para, por uma questão ética, quebrar o silencio. Eu estava no meu tempo de acreditar que a pessoa que ate então era da minha extrema confiança e afeto, era um abusador.

Agora quero ter a paz que tanto me tiraram por anos. E quero que todas as mulheres saibam que o feminismo é uma prática nossa, com consequências que nós mesmas podemos encarar e superar, como uma experiência de transformação, para seguirmos adiante com mais força.

 


Giordana Moreira

Produtora Cultural, fundadora da Roque Pense! rede de Mulheres Produtoras Culturais, e cria da Baixada Fluminense de onde faz rock, cultura urbana e feminismos para o mundo.

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