O tratamento midiático de dois episódios ocorridos em 2015 foram cruciais para minha triste constatação de que há algo de muito doente de verdade nas vísceras do país. Um deles foi o fechamento de uma lanchonete em Parada de Lucas, no Rio de Janeiro, por ser acusada de cometer dois crimes: vender carne de pombo em vez de carne de frango e manter trabalho escravo no estabelecimento. Lembro bem da indignação pública, dessas que duram vinte quatro horas e depois morrem sem nem se despedir. Um absurdo, como podem ter coragem pra isso, meu-deus, aonde já se viu vender carne de pombo em lugar de frango, malditos chineses, tem que fechar essa merda, cadê a justiça. Lembro também das zoadas nos programas de rádio e de TV, dos comentários na internet, nas filas de ônibus e nos bares. O pombo por frango, o gato por lebre. Mas sobre a acusação de trabalho escravo… Nada. Silêncio total. Esse crime passou batido, sequer merecedor de um meme ou algo que valha. Ah, trabalho escravo né, normal, segue a vida.
Depois foi o caso de uma criança indígena degolada nos braços da mãe, em Santa Catarina. Li numa pequenina nota em um jornal enquanto esperava pra cortar o cabelo. Lembro do choro que me veio, lembro dos segundos em que pensei que talvez as pessoas não tivessem entendido a palavra degolar, que é matar alguém cortando a garganta, sei lá, ingenuidade, não sei, mas o fato é que essa notícia que deveria paralisar o país surgiu como apenas mais um fato corriqueiro desses como um roubo de galinha, uma contratação de um jogador em um clube de terceira divisão, o novo namoro de uma subcelebridade, algo assim…
Sempre desconfiei disso, mas nesse ano me veio com uma nitidez incômoda e avassaladora a constatação de que há uma doença no país da qual nunca tratamos e que com o passar dos anos vai aumentando perigosamente rumo a uma metástase imprevisível. Uma ferida lancinante.
Há uma porção de gente no país que tolera coisas que deveriam ser intoleráveis. Para uma parcela grande da sociedade brasileira o assassinato de cinquenta mil jovens por ano não tem muita importância, não é sequer um assunto. Pelo contrário, cresceu absurdamente o número de gente que acha que é isso mesmo. Tem que matar. Gente que comemora Natal, fala de Jesus, mas aprova a tortura; que deseja feliz dias das crianças mas acha de boa a infância brasileira morrendo em carvoarias, quebrando pedras, vendendo o corpo, sem perspectivas de futuro.
Existe uma parcela do país que é desumana e rumina seu egoísmo enquanto vomita as virtudes de uma dita meritocracia mascaradora e violenta. Gente que fecha os olhos para a realidade de que a cocaína que movimenta milhões de dólares é financiada por sorridentes senadores, pastores picaretas e agentes do poder público – mas acham que é preciso mesmo metralhar as favelas. Um reduto de bandidos, vociferam essas pessoas que dizem ser contra a corrupção desde que hipocritamente não mexam com a corrupção delas.
“Calma, sua tia não é fascista…”, começava um texto que circulou muito na última campanha eleitoral. Olha, sei não… Talvez seja o caso de pensar na possibilidade de sua tia ser fascista, sim; tem muita chance de que aquele teu tio taxista fosse um dos que aplaudiriam Hitler queimando judeus em campos de concentração ou que comprariam pipoca pra ver com prazer as fogueiras da ku-klux-klan. É hora de admitir que há de fato um número grande de gente que tem o fascismo escondido de boa lá dentro do ser – e que agora, dada as condições, têm colocado ele pra fora, sem culpa e com entusiasmo até.
O país tem muitas mazelas, de vários matizes, mas é preciso admitir que há uma doença que não foi tratada e que agora tem ganhado força, uma espécie de câncer social que nos ameaça perigosamente, alimentado pelas máquinas de ódio movidas pelo junção dos interesses do grande capital com o nosso passado violentamente colonial. Uma combinação doentia e adoecedora, uma fábrica de gente perversa, mesquinha, limpinha e que compartilha fotos de bichinhos fofos, mensagens motivacionais e putaria pesada em aplicativos, sem nem pensar muito.
E essa doença deu pra sentir com força na eleição passada, onde a onda que rolou não teve nada a ver com lógica. E sim com essa doença social mesmo. Potencializada exponencialmente pela demonização do PT e pela máquina do watizape bancada com caixa dois. Tudo bem, é verdade, mas ainda sim, o irracional é que foi o ponto. A máquina do ódio apenas insuflou o que já existia por baixo do pano, por dentro das piadas, em silêncios, em aplausos, em linchamentos, em votos.
“Ah, mas o Lula…”, “Ah, mas se o Ciro…”, “Ah, mas a Marina…”, não, gente. Não teve a ver com lógica. Foi o grande momento da doença manifestada no país; vitaminada e estimulada por uma estratégia sórdida e eficiente, óbvio, mas era o momento. Lembro de muita gente que vi na campanha se desesperando pra explicar coisas óbvias e nada funcionando. Mulher tem que apanhar, tem que ganhar menos mesmo, fraquejada – e teve um monte de mulher votando com convicção. Não servem nem pra procriar, deus me livre filho meu casar com uma negra – e teve um monte de negro defensor do cara. Gente pai de filhos com necessidades especiais, gente que trabalha com saúde pública, uma porrada de professores. Parei naquele momento quando vi pais-de-santo defendendo o indefensável. Putz.
Vamos ser honestos com a gente mesmo: não era um momento de razão, lógica, ética. Era a doença em seu grau máximo e seu contágio avassalador. A ferida nunca tratada, agora exposta com toda a sua repugnância.
Às vezes tento imaginar o grau insuportável de violência numa vitória do Haddad, por exemplo: a horda de pitboys violentos, milicianos donos de currais eleitorais, imprensa golpista, sabotagens, histeria paneleira, o inferno que seria.
É horrível pensar isso, mas pode ser que a gente precisasse mesmo passar por essa tragédia eleita. Eu sei, eu sei: é horrível pensar isso. É horrível pensar isso porque sabemos o custo dessa aventura insana em termos de soberania nacional, em quantidade de baixas que estamos tendo e teremos, nos danos para as políticas públicas sociais, na quantidade de mortos a mais em nossa tragédia diária.
Mas também fica uma fresta de possibilidade de pensar que esse momento de baixa seja uma oportunidade para purgar o máximo que der dessa nossa chaga nacional que é a apatia, e em vários casos, a conivência tácita com nossa barbárie. As décadas de pano passado pra desigualdade social, pro racismo estrutural, pra violência contra os mais pobres, pro extermínio dos povos originários, pro assassinato da diversidade, pros chicoteamentos, pra truculência do latifúndio. Essa metralhadora de merda, esse rodízio de tapa na cara, vai que pode ser uma chance de construção, ou reconstrução sei lá, de algo, não sei bem ao certo. Que ajude a fortalecer a imensa parte do país que é aquilo de mais humano, criativo, vibrante, espiritual e espirituoso do povo brasileiro.
A ferida é feia e grande e a quantidade de pus é proporcional. E o pus tem mesmo um aspecto repugnante. Resta saber se essa ferida ainda pode ser tratada ou uma gangrena das brabas pode nos levar ainda a indesejáveis extremos.
Vamos precisar de muita respiração, ação e comunicação. Enquanto isso, o recomendável é se cuidar e cuidar de quem está próximo de você. Ainda há tempo.

[ heraldo hb – pitacolândia – setembro de 2019 ]


heraldo hb

. Animador cultural, escritor e produtor audiovisual nascido no século XX. .

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