Da Passarela do Rock ao Monumento a Bíblia – A estética do incômodo

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Passarela do Rock - Mesquita - Giordana Moreira

*Este artigo foi produzido durante a disciplina: Geografia da Cultura II, no Bacharelado em Produção Cultural do IFRJ Campus Nilópolis, sob orientação do Professor Alexandre de Oliveira Pimentel. Apresentado e publicado nos Anais do XIV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura – XIV ENECULT, Salvador, 2018.

Resumo

Através do fenômeno da Passarela do Rock, maior encontro de rock aberto do Estado do Rio de Janeiro, este artigo busca pensar a cultura roqueira no Município de Mesquita, abarcando um complexo sistema de formação da identidade cultural e territorial, a partir das disputas entre territorialidades diversas que convivem em um mesmo espaço, das relações de poder e da memória como elementos principais nesta construção.

Introdução

A territorialidade dos adeptos da cultura rock and’roll, no Município de Mesquita, é uma questão constante na pauta do debate acerca da cultura local, desde meados dos anos 2000. A existência da Passarela do Rock, o maior encontro aberto de rock do Estado do Rio de Janeiro, entre os anos 2001 e 2007, na Praça central da cidade, provocou intensas disputas entre diversas territorialidades que se manifestavam no mesmo espaço, e que são recorrentes até os dias de hoje, dez anos após o encerramento de suas atividades.

Mesquita é um município de 168 mil habitantes, emancipada da cidade de Nova Iguaçu há apenas 16 anos, e é localizada na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, a Baixada Fluminense, marcada por altos índices de desigualdade social e violações de direitos. Apesar de próxima da capital tem um clima de cidade do interior.

Considerando que “cultura não é apenas socialmente construída e geograficamente expressa, mas também espacialmente constituída” (JACKSON, 1992, p. XIII apud ALMEIDA, M. G. e RATTS, A., 2003 p. 266), a ocupação da Praça Secretária Elizabeth Paixão, por adeptos da cultura rock and’roll foi um ativador de múltiplos processos que dizem a respeito da construção e afirmação de uma identidade cultural e territorial roqueira mesquitense. Para compreender essa cultura precisa-se lançar o olhar sobre outras identidades culturais locais e diversas, que estão em interação através da ocupação deste espaço e da disputa entre essas territorialidades. Se “todas essas metáforas da produção cultural realçam a construção cultural da paisagem através de processos contestados de significação. Elas fazem de paisagens projeções culturais maleáveis cuja forma e cujo significado é determinado, em ultima analise, pelos contextos linguísticos e sociais associados a eles. (Demeritt, 1994, p. 164 apud ALMEIDA, M. G. e RATTS, A., 2003 p. 266), o rock foi para a cidade constituinte de sua própria paisagem cultural, forjada pela emblemática Passarela do Rock. Essa cultura contem as marcas dessas disputas, impressa na memoria da cidade e nas relações entre estes grupos.

Com essa identidade cultural roqueira presente na história da cidade, e considerando a memoria como elemento legitimador desta identidade, (ALMEIDA, M. G. e RATTS, A., 2003), destaco o legado da Passarela do Rock para os eventos do segmento em espaços públicos centrais da cidade, como parâmetros para novas iniciativas e também como componente da memoria e do patrimônio cultural local. E a correlação de forças e poderes com diferentes instituições no município e seus processos de apagamento desta memoria no desenrolar destas disputas.

A territorialidade roqueira mesquitense

Passarela do Rock - Mesquita - Giordana Moreira

Uma tradição de realizações de eventos dedicados a cultura rock and’roll na região da Baixada Fluminense desde a década de 70 culminou no surgimento espontâneo do maior encontro a céu aberto de adeptos do Estado do Rio de Janeiro, na Praça Secretária Elizabeth Paixão, no Centro da cidade de Mesquita, entre os anos 2001 e 2007.

A partir da Passarela do Rock a cidade passa a ser um território de roqueiros fluminenses oriundos dos municípios da Baixada e também dos subúrbios da capital, na sua dimensão material-concreta e subjetiva-simbólica, segundo o conceito sobre identidade territorial de Haesbaert, 1997 apud BORGES, J. C. de F. e CAVALCANTE JR, I. G.. Um público total entre 2 e 3 mil pessoas encontravam-se todos os domingos, em principio em um bar com cerca de 10x4mt, e com o aumento da procura ocupou a frente do bar, em seguida a passarela que corta a Estação Ferroviária de Mesquita e por fim toda a Praça principal. O visual inconfundível dos rockeiros, as músicas executadas ao vivo, as danças e rituais praticados ocupavam aquele espaço, enquanto eram rejeitados por outros grupos que tinham relação direta com este ou apenas transitavam ali.

Esta estética adotada, originária na cultura rock and’roll universalizada, constituía uma das principais materialidades da territorialização rockeira mesquitense. Se “a identidade remete a uma norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições simbólicas” (CUCHE, D. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Florianópolis: EdUSC, 1999. – cap. 6. “Cultura e Identidade” – p. 176), a dimensão material traduzida através da estética, constituída de roupas pretas, imagens de caveiras, os elementos de metal dos punks, as franjas emos, os sobretudos e coturnos dos headbangers, ocupavam totalmente a paisagem da área central da cidade, em contraponto a estética padronizada das famílias mesquitenses, ou diferentes, como os funkeiros e pagodeiros, que circulavam pelas áreas de lazer e convivência social da cidade. Os comportamentos dos jovens em público buscavam desafiar os padrões estabelecidos em cidades com perfil interiorano e conservador, como sugere Mesquita. Diferentemente dos outros eventos de rock em espaço público os jovens manifestavam uma diversidade sexual para além da heteronormativa, expondo diferentes orientações sexuais até então invisibilizadas.

A visível territorialização da Praça e da Cidade como espaço apropriado por aquele público provocou reações de diversos segmentos da sociedade mesquitense. O dia e horário de realização do encontro eram o mesmo dos cultos da religião neopetencostal, domingos á noite. E como a Praça, a passarela e a estação são locais de transito central para os mesquitenses os neopetencostais e roqueiros se cruzavam no trajeto da passarela. Desta forma a estética dos rockeitos, expandida pela grande concentração de público, era entendida como “demoníaca” para os religiosos. E esta estética como paisagem protagonista aos domingos a noite nas áreas de lazer causava um desconforto entre a população, pois estava visualmente localizada na passagem principal da cidade, tomando conta dos pavimentos da passarela, ao alcance dos olhos de todos que cruzavam a cidade nas duas vias principais localizadas a margem da ferrovia.

Outro transito comum colocava diferentes grupos em convivência no mesmo espaço. A saída do Baile Funk que acontecia no Tênis Clube de Mesquita, situado a menos de 300 metros de distancia, era um momento que ocasionava recorrentes brigas, gerando ocorrências negativas ao evento e pondo em risco a segurança dos frequentadores. No ano de 2003 o município era considerado a área mais violenta do Estado, segundo dados da Secretaria de Segurança do Estado. As festas promovidas após as apresentações ao vivo da Passarela do Rock no interior do Cemitério Municipal, também tiveram a violência como força opressora de suas práticas. O ambiente que para muitos é hostil durante a noite tornava-se cenário perfeito para as festas de subgrupos que constituíam a chamada nação rockeira, os góticos. No entanto esse cenário foi marcado pelo assassinato de dois jovens góticos, durante uma destas festas, em julho de 2003. (CIMIERI, F. Folha de São Paulo, 2013). Pela primeira vez a Passarela do Rock era noticiada na imprensa de massa, no entanto, como se dá à práxis jornalística no que se refere ao registro da Baixada Fluminense, nas páginas policiais.

Essa territorialidade roqueira mesquitense, é constituída nas relações de multiterritorialidade que acontecem neste espaço, e foi nesta correlação de forças que se deu a forte marginalização desta cultura para a região. Os roqueiros eram vistos pela população como desordeiros e a Passarela do Rock como causadora desta violência, causadora da “degradação” do espaço.

Disputas e as relações de poder no espaço

Com os conflitos ocorridos em razão do pelo fenômeno espontâneo da Passarela do Rock o território passou a ser disputado no âmbito das relações de poder que se estabeleceram nesse espaço. Apesar de constituir em numero um dos maiores eventos culturais fluminenses, o mesmo jamais esteve de acordo com as regulamentações técnicas para a realização de eventos em solo publico. Na administração municipal responsável por esta regulamentação há menção a Passarela do Rock somente no ano de 2006, no conteúdo da Lei 355, que dispõem sobre o Plano Diretor Municipal, onde se determina: O incentivo a Passarela do Rock reconhecendo-a no calendário da Cidade como Atividade Cultural de Mesquita. A construção deste plano teve participação da sociedade civil, e, entre eles frequentadores da Passarela do Rock.

A precariedade estrutural da Passarela do Rock refletia a infraestrutura para cultura na Baixada Fluminense. Com shows ao vivo realizados em equipamentos limitados e em cima da caçamba de um caminhão, de forma improvisada o encontro foi assim por anos realizado. Sem receber qualquer investimento ou ação de fomento, nem mesmo a economia gerada para os pequenos comerciantes locais aos domingos foi capaz de superar a falta de estrutura com o decorrer dos anos. Sem qualquer politica publica que atingisse o fenômeno da Passarela do Rock em 2007 ela encerra as atividades.

Mesmo com as atividades encerradas o encontro deixou um legado que observamos até os dias de hoje. Nos anos seguintes houve tentativas de resgate por parte de produtores locais que realizaram o evento Viaduto do Rock, no mesmo espaço. E em 2013 um movimento composto por iniciativas e grupos culturais da Baixada Fluminense impulsionou a criação de uma Lei Municipal que reconhecesse o rock como identidade cultural Mesquitense, estimulados pelo dialogo com a gestão municipal pública em exercício a época, e composto, também, por antigos frequentadores da Passarela do Rock. A proposta para criação da Semana Municipal do Rock foi feita na ocasião da Conferencia Municipal de Cultura, em Junho de 2013, e reiterada através da realização do “Dia Mundial do Rock –Pelo Fim da Violência Contra a Juventude”, em julho de 2013. O projeto de Lei foi elaborado, votado na Câmara e sancionado pelo Prefeito em exercício Flavio Nakan, em 2014, como Lei 815|2014. Para uma cultura marginalizada e oprimida, de forma muitas vezes violenta, virar uma Lei Municipal, se anunciava como uma grande conquista para a cultura local e os seus milhares de adeptos.

No entanto neste mesmo ano a gestão municipal definiu um novo espaço para realização de eventos na cidade, o Espaço Cultural da Feira, há 500 metros da Praça. O local já realizava apresentações musicais em função da realização da feira municipal, e foi estruturado com uma cobertura, sem estrutura de palco, sonorização, iluminação, sanitários, entre outros necessários para realizações de eventos. Por tratar-se de uma via pública os eventos programados teriam de se adaptar ao calendário da feira e da cidad,e programando o fechamento da via. Ou seja, a realização dos eventos continuava a depender de investimentos estruturais bem como a se adaptar ao espaço da via pública, apresentando as mesmas dificuldades das realizações independentes. Mesmo assim as três primeiras edições da Semana do Rock, bem como o evento Rock na Feira, foram realizados com o apoio pontual da Prefeitura, no Espaço Cultural da Feira até 2016. No entanto a ultima edição da Semana do Rock, em 2017, fora realizada na Praça Telemar, localizada no lado oposto a histórica.

A Memória que convém

Ao fim de 2015, fora inaugurada, no Centro da Praça Elizabeth Paixão, um monumento estilo rococó representando uma Bíblia Sagrada, pela Prefeitura, com a presença de representantes das igrejas neopentecostais. A escultura ocupou o lugar do chafariz no Centro da Praça, com aproximadamente oito metros de altura e seis de largura. O monumento é visível para os transeuntes do viaduto, da estação ferroviária e da passarela e está localizada no coração da Praça.

Embora o rock agora conste no calendário oficial da cidade, a mudança do espaço de realização desta manifestação, agora pré-estabelecido, foi um elemento impactante para o fazer cultural dos roqueiros mesquitenses. Com uma escultura imponente no local de origem da Passarela do Rock não há mais realização de eventos de rock na Praça.

A alteração mostrou que a situação para realização em eventos fora do local estabelecido apresentava condições semelhantes às anteriores á sanção da Lei: falta de infraestrutura e as instabilidades no que tange ao necessário trabalho conjunto com órgãos competentes pela administração pública, como ordem pública e transito. Na conclusão desta disputa observamos que a Praça passou a ser um “espaço delimitado e controlado”, no qual “se exerce um determinado poder, especialmente o de caráter estatal” (Haesbaert, 1999, aput aput BORGES, J. C. de F. e CAVALCANTE JR, I. G). O rock ainda esta submetido à validação social para acontecer em Mesquita.

Conclusão

A territorialidade roqueira mesquitense que fez da região da Baixada Fluminense o palco da maior manifestação de rock aberto ao público do Estado do Rio de Janeiro, forjada na relação entre as multiterritorialidades que convivem no espaço da Praça Secretária Elizabeth Paixão segue há cerca de 16 anos em disputa constante na região. Jovens moradores de cidades da Baixada e do subúrbio do Rio de Janeiro protagonizam uma resistência cultural que encara o coronelismo político praticado na região, demonstrado através do estabelecimento de politicas publicas sem consulta a população e que atendem aos interesses dos gestores públicos, aqui exemplificado na construção de um monumento religioso mesmo sendo, no Brasil um Estado laico. Encaram a imposição da religiosidade neopentecostal que domina a região na forma da existência de inúmeras sedes e na demonização de todo símbolo que vá contra seus códigos, entre eles a estética rock. Encaram a violência institucional, quando vivem em uma das áreas mais perigosas do Estado colocando suas vidas em risco pelo simples fato de estar em um espaço público a noite.

Além de um constante processo de marginalização, o apagamento da memoria coletiva sobre a Passarela do Rock vem causando o maior impacto no que tange a continuidade desta manifestação na cidade de Mesquita, através da substituição da estética da passarela ocupada por centenas de jovens vestidos de preto, por um monumento imponente de estética conservadora, visto que:

A construção das identidades territoriais possui duas dimensões, uma ancorada na memória coletiva, construída em torno do passado para confirmar a diferenciação e construir, com maior sucesso, uma identidade. E outra, ancorada nos referenciais espaciais, tanto do passado como do presente que podem ter várias origens. Hasbaert, 2007 aput BORGES, J. C. de F. e CAVALCANTE JR, I. G)

Sem possibilidades de materializar o rock no mesmo espaço do monumento, invertendo a lógica do desconforto causado pela presença dos jovens roqueiros, para o desconforto do jovem roqueiro em um espaço onde está materializada a simbologia dos poderes vigentes, que marginalizam o oprimem esta cultura local. Essa inversão simboliza o apagamento da memoria de um território, através da imposição de uma paisagem que revela relações de poder, e é utilizada como elemento de exclusão de uma identidade cultural roqueira mesquitense. O combate através da estética do incômodo.

Neste sentido faz-se necessário e urgente o registro e pesquisa sobre a identidade roqueira mesquitense, que em sua existência interage com processos opressores, de apagamento e marginalização. Esta narrativa continua sendo feita através dos constantes eventos e encontros promovidos por jovens roqueiros na cidade, em diferentes espaços. E é através da produção desta memória que se dá sequencia a esta construção continua, carregada pelo legado da Passarela do Rock, nas disputas por essa territorialidade até os dias de hoje, por um rock feito em território popular.

Referências

  • ALMEIDA, M. G. e RATTS, A. (org.). Geografia: Leituras Culturais. Goiânia: Alternativa, 2003. P 266.
  • BORGES, J. C. de F. e CAVALCANTE JR, I. G. Território, Identidade e Memória: Tramas conceituais para pensar a piauiensidade).
  • CUCHE, D. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Florianópolis: EdUSC, 1999. – cap. 6. “Cultura e Identidade” – p. 175-202
  • CIMIERI, F. Folha de São Paulo, 2013. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u79190.shtml

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Giordana Moreira

Produtora Cultural, fundadora da Roque Pense! rede de Mulheres Produtoras Culturais, e cria da Baixada Fluminense de onde faz rock, cultura urbana e feminismos para o mundo.

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