Quando morreu – dia 8 de outubro de 2008 – o Velho Marujo era, provavelmente, o morador mais antigo de Caxias. Dos 95 anos que viveu, mais de 70 deles foi como residente na cidade. Ainda criança, testemunhou a abertura da Estrada Rio – Petrópolis, hoje Avenida Leonel Brizola, mais conhecida como Kennedy, a esburacada. A par disso, conheceu em carne e osso muitos dos cidadãos locais, que hoje são nomes de rua. Manoel Vieira, por exemplo, tinha um caminhão, primeiro veículo automotivo que ele viu, aos seis anos de idade. Francisca Tomé, dona de toda a região onde é hoje o Corte Oito, incluindo o cemitério, era meio parente de sua mãe. Já o Tenente José Dias era o pai da Túlia e do Athos, com quem brincava em criança. E assim, sucessivamente.

Sei que isso é pouco, pra traçar o perfil de um carioca nascido no morro do Tuiuti, com a vocação de viver no mar e nele morrer, se possível fosse. Não por acaso, tornou-se um marujo tarimbado, que cruzou oceanos em busca de portos nos cinco continentes. Como empregado da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, viu de perto as atrocidades nazifascistas, durante a 2ª Guerra, o que lhe valeu uma medalha de ex-combatente, que exibia sempre com orgulho. Assim, pra completar a apresentação do personagem desta crônica, só preciso dizer agora que se chamava Waldemar de Souza e que foi meu pai, por exatos 61 anos, três meses e cinco dias.

Dos 25 anos que levou embarcado, o velho amealhou várias histórias – algumas delas muito boas e outras, nem tanto. Das últimas, falava de bombardeios em mares da Europa e tempestades no Golfo do México. Mas as melhores corriam por conta dos micos que pagava em países estrangeiros, de cujos idiomas não conhecia uma única palavra. Já velho, entre tantas lembranças ressaltava a experiência de ter visitado Cuba, antes e depois da Revolução de 1959. Não media palavras pra exaltar as transformações sociais que Fidel implantou na ilha. Até porque Waldemar era francamente a favor do comunismo.

O Velho Marujo era de pouquíssimas letras, lia muito mal e escrevia pior ainda. Mas isso não anulava o antigo hábito de ler os jornais diariamente, mesmo que passasse várias horas pra ler as principais notícias de duas ou três páginas. O Manifesto Comunista, do qual falava com frequência, só conhecia dos jornais que o PCBão editava e distribuía no Sindicato dos Marítimos, onde era militante de carteirinha. Também nunca se filiou ao partido, embora votasse fielmente em seus candidatos, que se lançavam pela legenda do PTB. Como esteve várias vezes na União Soviética, conseguiu elaborar uma teoria – tão simplória e sincera quanto ele – para explicar sua simpatia pelo marxismo:

– É um regime a favor do trabalhador. Se eu sou um trabalhador, não posso ser contra isso.

Com semelhante currículo, não era de se esperar que ele apoiasse o golpe de 64. Ao contrário: foi um dos opositores mais ferrenhos da ditadura, ao longo de seus 21 anos. E não era pra menos. Tão logo usurparam o poder, os milicos providenciaram sua aposentadoria compulsória. Dar adeus ao velho navio e à esperança de morrer em alto mar, mesmo que de doença, foi um golpe profundo naquela alma aventureira. Quase que o velho pirou. E a reação não se fez demorar. Falar mal do regime virou sua obsessão.

Já pela manhã, o velho saía pra comprar pão e jornal. As manchetes lidas pelo caminho de volta eram o mote que precisava, pra baixar a porrada no governo durante a refeição matinal. E pelo resto do dia ele ia lendo mal e mal as notícias, comentando-as em voz alta com a família como se fosse um âncora televisivo, que prescindisse de câmeras e microfones. Não havia nada que os milicos fizessem (ou deixassem de fazer), que escapasse à sua crítica feroz. Com o passar do tempo, a obsessão foi crescendo, a ponto de ele atribuir à ditadura qualquer coisa que o incomodasse, mesmo que esta estivesse fora da esfera do poder constituído.

Pois foi o que aconteceu naquela noite, em 1970. Eu viera à Caxias visitá-lo e fiquei pra ver, com ele e minha mãe, o Jornal Nacional. O frio era intenso, o que nos obrigava a manter a casa toda fechada. Entre um bloco de notícias e outro, a velha, não lembro por qual motivo, teve que abrir uma das janelas da sala. Incomodado com o ar gélido que invadiu o local, o marujo pediu que ela a fechasse logo. Minha mãe respondeu que esperasse um instante, mas meu pai insistiu:

– Fecha logo isso – gritou, encolhido num canto da poltrona.

Ela pediu calma, coisa que ele não tinha muito, e por fim o atendeu, com um protesto;

– Pronto, fechei a janela. Ô homem pra reclamar…

E ele, esfregando as mãos, ainda encolhido:

– É isso mesmo. Um frio desgraçado… Governo filho da puta.

 


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